Outros ainda incluem toda sociedade na qual as mulheres gozem de status relativamente alto. [ 52 ] A última definição é tão vaga, que não faz sentido como categoria. Penso que só podemos falar em matriarcado quando as mulheres têm poder sobre os homens, não ao lado deles; quando esse poder inclui o domínio público e as relações exteriores, e quando as mulheres tomam decisões essenciais não apenas para seus parentes, mas para a comunidade. De acordo com minha discussão anterior, esse poder deveria incluir a definição de valores e sistemas explicativos da sociedade, bem como a definição e o controle do comportamento sexual masculino. Pode-se observar que defino matriarcado como a imagem refletida do patriarcado. Segundo essa definição, eu concluiria que nunca existiu uma sociedade matriarcal.
Existiram e ainda existem sociedades nas quais as mulheres compartilham poder com os homens em muitos ou alguns aspectos da vida, e sociedades nas quais mulheres em grupos têm poder considerável para influenciar ou controlar o poder dos homens.
Também existem, e existiram ao longo da história, mulheres em particular com todos ou quase todos os poderes dos homens, que representam ou por quem atuam como substitutas, por exemplo, rainhas e soberanas. Como este livro mostrará, a possibilidade de compartilhar poder político e econômico com homens de sua classe ou posição tem sido privilégio de algumas mulheres de classe alta, o que as restringiu ainda mais ao patriarcado.
Há evidências arqueológicas da existência de sociedades no Neolítico e na Idade do Bronze nas quais as mulheres eram muito valorizadas, o que também pode indicar que tivessem certo poder. A maioria dessas evidências consiste de imagens de mulheres que foram interpretadas como deusas da fertilidade; e, da Idade do Bronze, artefatos artísticos que retratam mulheres com dignidade e sinais de alto status. Avaliaremos as evidências das deusas no Capítulo Sete e discutiremos sociedades mesopotâmicas na Idade do Bronze ao longo deste livro. Agora vamos revisar brevemente as evidências de um caso específico, citado muitas vezes por defensores da existência do matriarcado: Çatal Hüyük, na Anatólia (atual Turquia).
As escavações de James Mellaart, em especial em Hacilar e Çatal Hüyük,
trouxeram
esclarecimentos
relevantes
sobre
o
desenvolvimento das primeiras cidades na região. Çatal Hüyük, um assentamento urbano neolítico de 6 mil a 8 mil pessoas, foi construído em camadas consecutivas durante um período de cerca de 530 anos (6250-5720 a.C.), com novas cidades sobre as ruínas de assentamentos mais antigos. A comparação entre as várias camadas de assentamento em Çatal Hüyük e as de uma aldeia menor e mais antiga, Hacilar (construída entre 7040 e 7000 a.C.), oferece-nos conhecimento sobre uma sociedade em seus primórdios submetida à mudança histórica. [ 53 ]
Çatal Hüyük foi uma cidade construída como uma colmeia de residências individuais que pouco variavam em tamanho e mobiliário. Entrava-se nas casas pelo telhado, por meio de uma escada; cada casa era equipada com uma lareira de tijolo cru e um forno. Todas as casas tinham uma plataforma onde se dormia, e embaixo delas foram encontradas ossadas de mulheres e também
de crianças. Plataformas menores foram encontradas em posições variadas em diferentes dormitórios, ora com homens, ora com crianças enterrados sob elas, mas nunca homens e crianças juntos.
Mulheres eram enterradas com espelhos, joias e ferramentas feitas de ossos e pedras; homens eram enterrados com armas, argolas, contas e ferramentas. Tecidos e recipientes de madeira encontrados no local indicam um alto nível de habilidade e especialização, bem como amplo comércio. Mellaart encontrou tapetes de junco, cestos de tecido e muitos objetos feitos de obsidiana, um indício de que a cidade estava envolvida em comércio de longa distância e gozava de riqueza considerável. Foram encontradas ainda evidências de uma grande variedade de alimentos e grãos, e de ovelhas, cabras e cães domesticados nas camadas mais recentes.
Mellaart acha que apenas gente privilegiada era enterrada nas casas. Das 400 pessoas encontradas lá, apenas 11 tinham enterro
“ocre” – ou seja, as ossadas estavam pintadas com ocre vermelho, o que Mellaart interpreta como sinal de alto status. Como a maioria destas era de mulheres, Mellaart argumenta que as mulheres tinham alto status na sociedade e especula que podem ter sido sacerdotisas. Esse indício de certa maneira perde força pelo fato de que, das 222 ossadas adultas encontradas em Çatal Hüyük, 136
eram de mulheres, uma proporção surpreendentemente alta. [ 54 ] Se a maioria dos enterros “ocre” encontrados por Mellaart era de mulheres, isso poderia apenas se encaixar na proporção sexual da população geral. Mas indica, contudo, que as mulheres estavam entre as pessoas de alta classe, desde que a especulação de Mellaart sobre o significado do enterro “ocre” esteja correta.
A ausência de ruas, de uma grande praça pública ou de um palácio, bem como o tamanho e o mobiliário uniformes das casas,
levaram Mellaart a considerar que não havia hierarquia nem autoridade política central em Çatal Hüyük, e que a autoridade era compartilhada entre os habitantes. A primeira consideração parece adequada e pode ser sustentada por evidências comparativas, mas não podemos provar, com base nisso, que a autoridade era compartilhada. A autoridade, mesmo na ausência de uma estrutura de palácio ou órgão administrativo formal, pode ter ficado a cargo de grupos de parentes ou de um grupo de anciãos. Nada nos achados de Mellaart prova a autoridade compartilhada.
As várias camadas de Çatal Hüyük revelam uma quantidade extraordinariamente grande de santuários, que eram decorados com pintura nas paredes, ornamentos de gesso e estátuas. Não há representações de humanos nas camadas mais baixas da escavação, apenas touros e carneiros, pinturas de animais e chifres de touros. Mellaart interpreta esses achados como representações simbólicas de deuses homens. As primeiras representações de imagens femininas aparecem na camada de 6200 a.C., com seios, nádegas e quadris exagerados de forma grosseira. Algumas aparecem sentadas, uma aparece parindo; elas estão cercadas por seios de gesso nas paredes, alguns dos quais moldados sobre crânios e mandíbulas de animais. Há também uma estátua singular de um homem e uma mulher se abraçando e, ao lado dela, a estátua de uma mulher segurando uma criança. Mellaart chama essas imagens de deusas e observa que são associadas com a vida e a morte (dentes e mandíbulas de abutres nos seios); ele também nota a associação delas com padrões de flores, grãos e verduras na decoração das paredes, e com leopardos (símbolo da caça) e abutres (símbolo da morte). Nas camadas mais recentes não aparecem representações de deuses homens.
Mellaart argumenta que o homem de Çatal Hüyük era um objeto de orgulho, valorizado por sua virilidade, e que seu papel na procriação era compreendido. Ele acredita que homens e mulheres compartilhavam o poder e o controle sobre a comunidade no período inicial e que ambos participavam das caçadas. A última afirmação baseia-se em pinturas de parede que mostram mulheres participando de uma cena de ritual ou caçada com um cervo e um javali. Essa parece uma conclusão bastante exagerada, considerando-se que ambas as pinturas mostram uma grande quantidade de homens caçando e cercando o animal, enquanto apenas duas figuras femininas são visíveis, ambas de pernas abertas, o que pode indicar algum simbolismo sexual, embora pareça um tanto incompatível com a participação de mulheres em caçadas. [ 55 ] Da estrutura das construções e plataformas, Mellaart compreende que a organização comunitária era matrilinear e matrilocal. Essa última suposição é bastante provável, com base em evidências. Ele acredita que as mulheres desenvolveram a agricultura e controlavam seus produtos. Pela ausência de evidências de sacrifício humano nos santuários, ele argumenta que não havia autoridade central nem casta militar, e diz que em toda a Çatal Hüyük não existem evidências de guerra ao longo de um período de mil anos. Mellaart também defende que as mulheres criaram a religião neolítica e que, sobretudo, eram artistas.
Esses achados e evidências foram interpretados de maneiras divergentes. Em uma pesquisa acadêmica, P. Singh detalha todas as evidências de Mellaart e as contextualiza com outros assentamentos neolíticos, mas omite as conclusões de Mellaart, exceto sobre a economia da cidade. [ 56 ] Em um estudo de 1976, Ian Todd, que participou de algumas das escavações de Çatal
Hüyük, advertiu que a natureza limitada das escavações de Çatal Hüyük torna prematuras as conclusões sobre estratificação na sociedade. Ele concorda que os achados arqueológicos demonstrem uma sociedade com estrutura social completa, mas conclui que “não sabemos se a sociedade era mesmo matriarcal como se sugere”. [ 57 ] Anne Barstow, em uma avaliação cuidadosa, concorda com a maioria dos achados de Mellaart. Ela enfatiza a importância dessas observações a respeito da celebração da fecundidade e força da mulher, e de seu papel na criação da religião, mas não constata nada que comprove o matriarcado. [ 58 ]
Ruby Rohrlich, com base nas mesmas evidências, defende a existência de matriarcado. Ela aceita sem questionar as generalizações de Mellaart e argumenta que as evidências apresentadas por ele refutam a universalidade da supremacia masculina nas sociedades humanas. A análise de Rohrlich é importante por concentrar a atenção em várias partes de evidências de mudança na sociedade quanto às relações entre os sexos no período da formação de estados arcaicos, mas sua falta de clareza na distinção entre relações igualitárias homem-mulher e matriarcado obscurece nossa visão. [ 59 ]
Os achados de Mellaart são importantes, mas suas
generalizações sobre o papel das mulheres devem ser consideradas com cuidado. Parece haver evidências nítidas de matrilocalidade e de culto a deusas mulheres. A periodização do início desse culto é incerta: Mellaart o relaciona ao início da agricultura, que ele acha ter dado um status mais alto às mulheres. Como veremos de forma mais completa, o oposto disso parece ser o caso em muitas sociedades. Mellaart pode ter reforçado seu argumento usando achados de um de seus colegas de trabalho, Lawrence Angel, que
descobriu, analisando fósseis, um aumento significativo na expectativa de vida de mulheres do Neolítico em relação ao Paleolítico: de 28,2 anos para 29,8 anos. Esse aumento de quase dois anos na longevidade feminina deve ser considerado em comparação com a expectativa de vida de 34,3 anos de Çatal Hüyük. Em outras palavras, apesar de os homens viverem quatro anos a mais do que as mulheres, houve um aumento considerável na longevidade das mulheres em comparação com um período anterior. Esse aumento pode ter ocorrido em razão da mudança de caça-coleta para agricultura, e pode ter dado às mulheres um papel relativamente mais dominante nessa cultura. [ 60 ] As observações de Mellaart sobre a ausência de guerra em Çatal Hüyük devem ser comparadas com as evidências abundantes de existência de guerra e de comunidades combativas em regiões vizinhas. E, por fim, não podemos deixar de considerar o abandono repentino e sem explicação de seus habitantes por volta de 5700 a.C., que parece indicar uma derrota militar ou a incapacidade da comunidade de se adaptar a mudanças nas condições ecológicas. Seja qual for o caso, corroboraria a observação de que comunidades com relações de certa forma igualitárias entre os sexos não sobreviveram. [ 61 ]
Ainda assim, Çatal Hüyük nos fornece evidências sólidas da existência de algum tipo de modelo alternativo ao patriarcado.
Acrescentando-se isso às outras evidências que citamos, podemos afirmar que a subordinação feminina não é universal, mesmo que não tenhamos provas da existência de uma sociedade matriarcal.
Porém as mulheres, assim como os homens, têm grande necessidade de um sistema explicativo que não apenas nos diga o que é e por que é assim, mas que também nos ofereça uma visão alternativa do futuro. [ 62 ] Portanto, antes que prossigamos para as
evidências históricas do estabelecimento do patriarcado, vamos apresentar um modelo hipotético – para libertar a mente e a alma, brincar com as possibilidades e considerar alternativas.
DOIS
HIPÓTESE DE TRABALHO
A
devemos começar qualquer teoria
sobre o passado é a de que homens e mulheres construíram a civilização em conjunto. [ 63 ] Começando pelo desfecho e voltando para trás, fazemos uma pergunta diferente daquela sobre uma
“origem” de causa única. Perguntamos: como homens e mulheres, na criação da sociedade e na construção do que chamamos de civilização ocidental, chegaram à situação atual? Quando abandonamos o conceito de mulheres como vítimas históricas, influenciadas por homens violentos, “forças” inexplicáveis e instituições da sociedade, devemos explicar o enigma central – a participação da mulher na construção do sistema que a subjuga.
Sugiro que abandonar a busca por um passado empoderador – a busca pelo matriarcado – seja o primeiro passo na direção certa. A criação de mitos compensatórios do passado distante das mulheres não as emancipará nem no presente, nem no futuro. [ 64 ] O
pensamento patriarcal é construído de tal modo em nossos processos mentais, que não podemos excluí-lo se não tomarmos consciência dele, o que sempre significa um grande esforço. Assim, quando pensamos sobre o passado pré-histórico das mulheres,
estamos tão presos ao sistema explicativo androcêntrico, que o único modelo alternativo que vem de imediato à cabeça é o oposto.
Se não era patriarcado, então só pode ter sido matriarcado. É certo que havia diversas maneiras de homens e mulheres organizarem a sociedade e compartilharem poder e recursos. Nenhuma das evidências arqueológicas que temos é conclusiva e suficiente para nos permitir construir um modelo cientificamente correto daquele importante período de transição de caçadores-coletores neolíticos para sociedades sedentárias voltadas à agricultura. O método dos antropólogos, que nos oferecem exemplos de sociedades contemporâneas de caçadores-coletores e extraem desses exemplos conclusões sobre sociedades no quinto milênio a.C., não é menos especulativo do que o método do filósofo e do especialista em estudos religiosos, que argumentam com base em literatura e mitos. A questão é que a maioria dos modelos especulativos é androcêntrica e admite a naturalidade do patriarcado, e os poucos modelos feministas são a-históricos e, portanto, insuficientes, a meu ver.
Uma análise correta da nossa situação e de como ela aconteceu ajuda-nos a criar uma teoria empoderadora. Devemos pensar em gênero do âmbito histórico e específico, tal como ocorre em sociedades variadas e sujeitas a mudanças. A antropóloga Michelle Rosaldo chegou a conclusões semelhantes, embora partindo de um ponto de vista diferente. Ela escreveu:
Procurar origens é, no fim das contas, pensar que o que somos hoje é algo além do produto de nossa história e nosso mundo social do presente, e, de forma mais específica, que nossos sistemas de gênero são primordiais, transistóricos e essencialmente imutáveis. [ 65 ]
Nossa busca, portanto, torna-se uma busca pela história do sistema patriarcal. Dar historicidade ao sistema de dominância masculina e afirmar que suas funções e manifestações mudam ao longo do tempo é romper com a tradição oferecida. Essa tradição mistificou o patriarcado, tornando-o a-histórico, eterno, invisível e imutável. Mas é exatamente por causa de mudanças em oportunidades sociais e educacionais disponíveis às mulheres que, nos séculos XIX e XX, inúmeras delas enfim foram capazes de avaliar de forma crítica o processo pelo qual ajudamos a forjar e manter o sistema. Somente agora conseguimos conceituar o papel das mulheres na história, criando, assim, uma consciência que pode emancipá-las. Essa consciência também pode libertar os homens das consequências indesejáveis do sistema de dominância masculina.
Ao abordar essa pesquisa como historiadores, precisamos abandonar explicações de causa única. Devemos presumir que, se e quando eventos ocorrem de forma simultânea, eles não têm necessariamente relação causal. Devemos presumir a possibilidade de que mudanças tão complexas quanto uma alteração básica nas estruturas de parentesco ocorreram como resultado de uma variedade de forças em interação. Precisamos testar qualquer hipótese desenvolvida para um modelo de forma comparativa e entrecruzando culturas. A posição das mulheres na sociedade deve também ser observada sempre em comparação com a posição dos homens do mesmo grupo social e da mesma época.
Precisamos provar nossa teoria não apenas com evidências materiais, mas com evidências de fontes escritas. Embora procuremos a ocorrência de “padrões” e semelhanças, devemos
estar abertos à possibilidade de que conclusões semelhantes, decorrentes de uma variedade de fatores, possam ser o resultado de processos muito diferentes. Sobretudo, precisamos enxergar a posição da mulher na sociedade como sujeita a mudanças ao longo do tempo, não apenas na forma, como também no significado; por exemplo, o papel social da “concubina” não pode ser avaliado por padrões do século XX ou mesmo do século XIX quando o estudamos no primeiro milênio a.C. Esse é um exemplo tão óbvio, que parece desnecessário citá-lo, mas tais erros acontecem com frequência na discussão do passado das mulheres. O gênero, em particular, tem importância simbólica, bem como ideológica e legal, tão forte na maioria das sociedades, que não podemos entendê-lo sem prestar atenção a todos os aspectos de seu significado.
A construção hipotética que ofereço pretende ser apenas um de inúmeros modelos possíveis. Mesmo na limitada região geográfica do Antigo Oriente Próximo deve ter havido diversas maneiras pelas quais ocorreu a transição para o patriarcado. Como é provável que jamais saibamos com exatidão o que aconteceu, somos obrigados a especular a respeito do que pode ter acontecido. Essas projeções utópicas sobre o passado têm uma importante função para quem deseja criar teorias – saber o que pode ter acontecido dá abertura a novas interpretações. Permite-nos especular a respeito do que pode acontecer no futuro, livres dos limites de uma estrutura restrita e antiquada.
Comecemos com o período de transição, quando hominídeos evoluíram de primatas, há cerca de 3 milhões de anos, e consideremos a mais básica díade: mãe e filho. A primeira característica que distingue seres humanos de outros primatas é a infância prolongada e vulnerável da criança humana. Isso é
resultado direto do bipedismo, que causou o estreitamento da pelve feminina e do canal vaginal em razão da postura ereta. Em consequência disso bebês humanos nascem em maior estágio de imaturidade do que outros primatas, com a cabeça relativamente menor, para facilitar a passagem pelo canal vaginal. Além disso, em comparação com os macacos mais desenvolvidos, bebês humanos nascem sem pelos, portanto, têm mais necessidade de aquecimento. Eles não podem se agarrar às mães para um apoio estável, pois não têm os dedos dos pés flexíveis dos macacos, então as mães precisam usar as mãos ou, depois, substitutos mecânicos, para que possam segurar os bebês junto ao corpo. [ 66 ]
O bipedismo e a postura ereta também resultaram no desenvolvimento mais refinado da mão, no polegar e em maior coordenação sensorial da mão. Consequentemente, o cérebro humano se desenvolve por muitos anos durante o período de infância, em que a criança é totalmente dependente, sendo, portanto, sujeito a modificações por meio do aprendizado e de intensa moldagem cultural, de modo completamente diferente do desenvolvimento dos animais. A neurofisiologista Ruth Bleier usa esses fatos em um argumento revelador contra quaisquer teorias que afirmem ser as características humanas “inatas”. [ 67 ]
A mudança do forrageamento para a coleta de alimentos para consumo posterior, possivelmente por mais de um indivíduo, foi crucial para o avanço do desenvolvimento humano. Deve ter fomentado a interação social, a invenção e o desenvolvimento de recipientes, além do lento aumento evolutivo do tamanho do cérebro. Nancy Tanner sugere que as mulheres, ao cuidar de seus vulneráveis bebês, foram mais incentivadas a desenvolver essas habilidades, enquanto os homens continuaram a forragear sozinhos
durante um longo período. Ela especula que foram essas atividades que levaram ao primeiro uso de ferramentas para abrir e dividir alimentos vegetais com as crianças e para cavar em busca de raízes. Fosse como fosse, a sobrevivência do bebê dependia da qualidade dos cuidados maternos. “De forma semelhante, a efetividade de coleta da mãe melhorou sua própria nutrição, aumentando, portanto, sua expectativa de vida e fertilidade.” [ 68 ]
Postulamos, como Tanner e Bleier, que, dos hominídeos eretos aos seres humanos plenamente desenvolvidos da Era Neandertal ou Idade da Pedra (100 mil a.C.), o papel das mulheres foi fundamental. Pouco depois desse período, a caça em grande escala feita por grupos de homens foi desenvolvida na África, na Europa e na Ásia Setentrional; as evidências mais antigas da existência de arcos e flechas pode ser datada apenas de 15 mil anos atrás. Como a maioria das explicações para a divisão sexual do trabalho postula a existência de sociedades de caçadores-coletores, precisamos observar com mais atenção tais sociedades nos períodos Paleolítico e Neolítico.
Vêm do Neolítico as evidências remanescentes de pinturas em paredes e esculturas que sugerem a difundida adoração da Deusa-Mãe. Podemos entender por que é provável que homens e mulheres a tenham escolhido como primeira forma de expressão religiosa se considerarmos o laço psicológico entre mãe e filho. Devemos nossos conhecimentos sobre as complexidades e a importância
desse laço em grande parte aos registros psicanalíticos modernos. [
69 ] Como Freud nos mostrou, na primeira experiência de mundo da
criança, o ambiente em sua totalidade e o eu mal se separam. O
ambiente, que, em termos básicos, é a mãe como fonte de alimento, calor e prazer, apenas aos poucos torna-se diferenciado do eu,
conforme o bebê sorri ou chora para garantir a gratificação de suas necessidades. Quando as necessidades do bebê não são satisfeitas e ele sente ansiedade e dor associadas ao frio e à fome, o bebê aprende a reconhecer o poder opressor do “outro lá fora”, a mãe.
Estudos psicológicos modernos nos oferecem narrativas detalhadas da complexa interação entre mãe e filho e das formas como a resposta do corpo da mãe, seu sorriso e sua fala ajudam a formar o conceito de mundo e de eu da criança. É nessa interação humanizadora que o bebê começa a tirar prazer de sua capacidade de impor a própria vontade sobre o ambiente. O esforço por autonomia e reconhecimento da individualidade é produzido na luta do bebê contra a presença opressora da mãe.
Os registros psicoanalíticos nos quais se baseiam essas generalizações vêm de um estudo sobre a maternidade em sociedades ocidentais modernas. Ainda assim, eles enfatizam a importância crucial da experiência de completa dependência do bebê e da experiência de poder opressor da mãe para a formação de caráter e identidade do indivíduo. Em uma época em que leis contra o infanticídio, bem como a disponibilidade de mamadeiras, quartos aquecidos e cobertores, oferecem aos bebês proteção social, não importando as inclinações da mãe, esse “poder opressor da mãe” parece mais simbólico do que real. Há 200 anos ou mais, outros cuidadores, homens e mulheres, podem, se necessário, oferecer serviços maternos a um bebê sem arriscar suas chances de sobrevivência. A sociedade civilizada colocou-se entre mãe e filho e mudou a maternidade. Mas, em condições primitivas, antes da criação das instituições da sociedade civilizada, o poder real da mãe sobre o bebê deve ter sido aterrador. Apenas os braços e o cuidado da mãe abrigavam o bebê do frio; apenas o leite materno
podia fornecer a nutrição necessária para sua sobrevivência. A indiferença ou negligência da mãe significava morte certa. A mãe que dava a vida tinha, de fato, poder sobre a vida e a morte. Não surpreende que homens e mulheres, observando esse poder dramático e misterioso da mulher, tenham passado a adorar a Deusa-Mãe. [ 70 ]
Meu objetivo aqui é enfatizar a necessidade, que criou a divisão inicial do trabalho, segundo a qual as mulheres realizavam a função materna. Durante milênios, a sobrevivência do grupo dependeu disso e não havia alternativa.
Nas condições extremas e perigosas sob as quais viviam os humanos primitivos, a sobrevivência até a idade adulta de pelo menos dois filhos por casal exigia muitas gestações para cada mulher. Dados precisos sobre a expectativa de vida pré-histórica são de difícil obtenção, mas estimativas com base em estudos de fósseis colocam a essa expectativa, do Paleolítico e do Neolítico, entre 30 e 40 anos. No estudo detalhado de 222 ossadas adultas de Çatal Hüyük mencionado antes, Lawrence Angel chegou à expectativa de vida de 34,3 anos para homens e de 29,8 anos para mulheres (excluem-se da análise os que morreram durante a infância). [ 71 ]
Mulheres precisavam ter mais gestações do que partos bem-sucedidos, como continuou a ser o caso também em épocas históricas de sociedades agrícolas. A infância dos bebês era bastante prolongada, uma vez que as mães os amamentavam por dois ou três anos. Assim, podemos presumir que era absolutamente necessário para a sobrevivência do grupo que a maioria das mulheres núbeis dedicasse a vida adulta a engravidar, ter filhos e amamentar. Era esperado que homens e mulheres aceitassem tal
necessidade e construíssem crenças, tradições e valores dentro de suas culturas que sustentassem essas práticas essenciais.
Consequentemente, mulheres escolhiam ou preferiam atividades econômicas que pudessem ser combinadas com facilidade aos deveres da maternidade. Embora seja razoável presumir que algumas mulheres em cada tribo ou bando fossem fisicamente capazes de caçar, também pode se presumir que não queriam participar de caçadas a grandes animais com regularidade, pois ficariam sobrecarregadas fisicamente com filhos na barriga, nos quadris ou nas costas. Além disso, embora um bebê carregado nas costas possa não ser um impedimento para a mãe participar de uma caçada, um bebê chorando pode ser. Exemplos citados por antropólogos de tribos de caçadores-coletores no mundo contemporâneo, nas quais são feitos acordos alternativos para os cuidados dos filhos e nas quais as mulheres participam de caçadas de modo ocasional, não contradizem o argumento anterior. [ 72 ]
Apenas mostram o que as sociedades podem fazer com relação a tentativas e organização; não mostram, porém, qual foi o provável modo predominante, do âmbito histórico, que permitiu a sobrevivência das sociedades. É óbvio que, dada a curta e precária expectativa de vida do Período Neolítico que mencionei antes, as tribos que colocavam em risco a vida de mulheres núbeis em caçadas ou guerras, assim aumentando a probabilidade de que se machucassem em acidentes, não tendiam a sobreviver tão bem quanto tribos em que essas mulheres trabalhavam de outra maneira.
Portanto, a primeira divisão sexual do trabalho, pela qual homens caçavam grandes animais e mulheres e crianças caçavam pequenos animais e coletavam alimentos, parece ter se originado de
diferenças biológicas entre os sexos. [ 73 ] Não se trata de diferenças de força ou resistência, mas unicamente reprodutivas – em especial, a capacidade de amamentar bebês. Posto isso, quero enfatizar que minha aceitação de uma “explicação biológica” só é aplicável aos primeiros estágios do desenvolvimento humano e não significa que a divisão sexual do trabalho ocorrida depois, com base na maternidade, seja “natural”. Pelo contrário, mostrarei que a dominância masculina é um fenômeno histórico porque surgiu de um fato biologicamente determinado e tornou-se uma estrutura criada e reforçada em termos culturais ao longo do tempo.
Minha síntese não pretende sugerir que todas as sociedades primitivas sejam organizadas de tal maneira, a fim de impedir que mães exerçam atividades econômicas. Sabemos, pelo estudo de sociedades primitivas do passado e do presente, que os grupos encontram várias formas de estruturar a divisão do trabalho para mães que cuidam de seus filhos e também para mães livres para uma grande variedade de atividades econômicas. Algumas mães levam os filhos com elas por longas distâncias; em outros casos, idosos e filhos mais velhos atuam como cuidadores. [ 74 ] Fica claro que, para as mulheres, a ligação entre ter e criar filhos é determinada culturalmente e sujeita à manipulação social. Meu objetivo é salientar que a mais antiga divisão sexual do trabalho, segundo a qual as mulheres escolheram ocupações compatíveis com a maternidade e a criação dos filhos, era funcional, por isso satisfatória tanto para homens quanto para mulheres.
A infância prolongada e vulnerável dos humanos cria o forte laço materno. Essa relação, necessária do ponto de vista social, se fortalece pela evolução durante os estágios iniciais do desenvolvimento da humanidade. Perante situações novas e
ambientes instáveis, é provável que tribos e grupos nos quais as mulheres não exerciam bem o papel de mães nem zelavam pela saúde e sobrevivência das mulheres núbeis não tenham conseguido sobreviver. Ou, por outro lado, grupos que aceitavam e institucionalizavam uma divisão sexual do trabalho que fosse funcional tinham mais chances de sobreviver.
Podemos apenas especular sobre as personalidades e
autopercepções de pessoas que viveram sob as condições predominantes no Neolítico. A necessidade deve ter imposto limitações aos homens, bem como às mulheres. Era preciso ter coragem para deixar o abrigo da caverna ou cabana para enfrentar animais selvagens com armas primitivas, vagar longe de casa e arriscar encontros com tribos vizinhas possivelmente perigosas.
Homens e mulheres devem ter desenvolvido a coragem necessária para a autodefesa e a defesa da prole. Devido à tendência cultural de se concentrar nas atividades de homens, etnógrafos nos forneceram muita informação sobre as consequências do desenvolvimento da autoconfiança e competência do homem-caçador. Com base em evidências etnográficas, Simone de Beauvoir especulou que foi essa divisão inicial do trabalho a origem da desigualdade entre os sexos, que condenou a mulher à
“imanência” – a busca pelo trabalho diário, repetitivo e sem fim –, ao contrário do que ocorreu com a bravura do homem, que o levou à
“transcendência”. A fabricação de ferramentas, invenções, o desenvolvimento de armas – descreve-se tudo isso como oriundo das atividades do homem em busca de subsistência. [ 75 ] Mas o crescimento psicológico das mulheres recebeu bem menos atenção e costuma ser descrito em termos mais condizentes com os relativos a uma dona de casa moderna do que a uma integrante de
tribo da Idade da Pedra. Elise Boulding, em seu resumo do passado das mulheres, sintetizou conhecimentos antropológicos para apresentar uma interpretação bem diferente. Boulding enxerga nas sociedades neolíticas um compartilhamento igualitário de trabalho no qual cada sexo desenvolveu habilidades e conhecimento apropriados essenciais para a sobrevivência do grupo. Ela nos conta que a coleta de alimentos exigia um conhecimento elaborado de ecologia, plantas, árvores e raízes, além de suas propriedades como alimento e medicamento. Descreve a mulher primitiva como guardiã do fogo doméstico, como a inventora de recipientes de argila e tecido, que permitiam que os excedentes da tribo fossem guardados para épocas de escassez. Descreve ainda a mulher como alguém que extraía de plantas, árvores e frutas os segredos da transformação de seus produtos em substâncias curativas, tinturas, cânhamo, fios e roupas. A mulher sabia como transformar matéria-prima e animais mortos em alimento. Suas habilidades devem ter sido tão diversas quanto as do homem, e por certo tão essenciais quanto as dele. Ela tinha talvez mais conhecimento ou pelo menos tanto quanto o homem; é fácil imaginar que devia ser o suficiente para ela. Na criação de rituais e ritos, de música, dança e poesia, ela teve tanta participação quanto ele. E, ainda assim, devia ser responsável por gerar e criar filhos. A mulher, na sociedade pré-
civilizada, deve ter sido igual ao homem e pode muito bem ter se considerado superior a ele. [ 76 ]
A literatura psicanalítica e, mais recentemente, a reinterpretação feminista de Nancy Chodorow nos oferece descrições úteis do processo pelo qual o gênero foi criado com base no fato de que as mulheres são responsáveis pelos cuidados dos filhos. Vejamos se essas teorias têm validade para descrever o processo de
desenvolvimento histórico. Chodorow argumenta que “a relação com a mãe difere de modo sistemático para meninos e meninas, desde os períodos mais antigos”. [ 77 ] Meninos e meninas aprendem a esperar de mulheres o amor infinito e acolhedor de uma mãe, mas também associam a mulheres o medo de suas fraquezas. A fim de encontrar a própria identidade, meninos se desenvolvem como
“diferentes da mãe”; identificam-se com o pai e repudiam expressões de sentimentos, preferindo a ação. Uma vez que são as mulheres que criam os filhos, Chodorow diz:
[...] meninas em crescimento se definem e sentem-se em conexão com o outro; a experiência de si mesma como meninas apresenta limites de ego mais flexíveis ou permeáveis. Meninos se definem com mais isolamento e distinção, com uma noção maior de limites rígidos de ego e diferenciação. O senso se si básico feminino é conectado com o mundo, o senso de si básico masculino é isolado. [ 78 ]
Pela forma como sua individualidade se define em comparação com a mãe cuidadora, meninos são preparados para participar da esfera pública. Meninas, identificando-se com a mãe e sempre mantendo a relação primária próxima com ela, ainda que transfiram o interesse amoroso para homens, são preparadas para maior participação nas “esferas dos relacionamentos”. Meninos e meninas definidos pelo gênero são preparados “para assumir papéis de gênero adultos, que, em grande parte, situam mulheres dentro da esfera de reprodução em uma sociedade desigual em termos de sexo”. [ 79 ]
A sofisticada reinterpretação feminista de Chodorow da explicação freudiana para a criação de personalidades definidas por gênero é
pela
sociedade
industrial
ocidental
e
seus
relacionamentos por afinidade e familiares. É duvidoso, porém, que seja aplicável a pessoas não brancas que vivam dentro dessas sociedades, motivo pelo qual devemos ser cautelosos ao generalizar com base nisso. Ainda assim, seu argumento para a base psicológica que sustenta as relações e instituições sociais é sólido. Ela e outros argumentam de maneira convincente que devemos prestar atenção à “maternidade” na sociedade patriarcal, em sua estrutura e nas relações que ela gera, se quisermos alterar as relações entre os sexos e acabar com a subordinação das mulheres. [ 80 ]
Eu especularia que o tipo de formação de personalidade que Chodorow descreve como resultado de mulheres que criam filhos em sociedades industrializadas atuais não ocorria em sociedades primitivas do Neolítico. Em vez disso, as atividades de criação e cuidados das mulheres, associadas a sua autossuficiência na coleta de alimentos e senso de competência para diversas habilidades essenciais à vida, devem ter sido consideradas por homens e mulheres como fonte de força e, é bem provável, poder mágico. Em algumas sociedades, mulheres zelosas guardavam os “segredos” de seu grupo, sua magia, o conhecimento sobre ervas curativas. A antropóloga Lois Paul, cujo relato gira em torno de uma aldeia indígena da Guatemala no século XX, diz que o mistério e o pavor em relação à menstruação contribuem para o “senso de participação nos poderes místicos do universo” das mulheres. Elas manipulam o medo dos homens de que o sangue menstrual ameace sua
virilidade, transformando a menstruação em uma arma simbólica. [
Na sociedade civilizada, são as meninas que têm mais dificuldade na formação do ego. Eu diria que, na sociedade primitiva, esse fardo deve ter sido dos meninos, cujo medo e admiração pela mãe deve ter se transformado por ação coletiva em identificação com o grupo masculino. Se as mães e seus filhos pequenos se uniram a outros grupos de mães-filhos para atividades de coleta e processamento de alimentos, ou se os homens tiveram a iniciativa de levar os meninos ao grupo – isso permanece no âmbito da conjectura. As evidências de sociedades primitivas sobreviventes mostram diversas maneiras de estruturação da divisão sexual do trabalho em instituições da sociedade, que unem meninos a homens: preparação para ritos de iniciação separada por sexo; residências com membros do mesmo sexo e participação em rituais com membros do mesmo sexo são apenas alguns exemplos. Inevitavelmente, sair em grupos para caçar grandes animais levava à formação de laços, que devem ter sido muito fortalecidos pela guerra e pela preparação necessária para transformar meninos em guerreiros. Era essencial que as mulheres tivessem habilidades de maternidade também eficazes para garantir a sobrevivência tribal, que deviam ser bastante valorizadas – assim como as habilidades de caça e guerra dos homens. Pode-se supor que tribos que não criavam homens capacitados para a guerra e a defesa acabavam sucumbindo às tribos que fomentavam essas habilidades nos homens. Esses argumentos evolutivos são apresentados com frequência, mas estou aqui falando também em favor de um argumento psicológico com base em condições históricas variáveis. A formação do ego do indivíduo do sexo masculino, que deve ter ocorrido em um contexto de medo, admiração e possivelmente pavor da mulher, pode ter
levado os homens à criação de instituições sociais para incentivar o ego, aumentar a autoconfiança e validar sua noção de valor.
Teóricos já ofereceram várias hipóteses para explicar a ascensão do homem, o guerreiro, e sua propensão para criar estruturas militaristas. Essas variam de explicações biológicas (a concentração mais alta de testosterona no homem e sua maior força o tornam mais agressivo) a psicológicas (o homem compensa sua incapacidade de dar à luz com dominância sexual sobre mulheres e agressividade para com outros homens). Freud via a origem da agressividade masculina na rivalidade edipiana entre pai e filho pelo amor da mãe e supunha que os homens tivessem construído a civilização para compensar a frustração de seus instintos sexuais na primeira infância. As feministas, começando por Simone de Beauvoir, foram muito influenciadas por tais ideias, o que tornou possível a explicação de que o patriarcado resultou ou da biologia masculina ou da psicologia masculina. Assim, Susan Brownmiller vê a capacidade que o homem tem de estuprar como causa da propensão a estuprar mulheres, e mostra como isso levou à dominância dos homens sobre as mulheres e à supremacia masculina. Elizabeth Fisher argumentou de modo engenhoso que a domesticação de animais ensinou ao homem seu papel na procriação, e que a prática da reprodução forçada de animais deu-lhe a ideia de estuprar mulheres. Ela alegou que a brutalização e a violência relacionadas à domesticação de animais geraram a dominância sexual e a agressividade institucionalizada do homem.
Em época mais recente, Mary O’Brien criou uma explicação elaborada da origem da dominância masculina com base na necessidade psicológica do homem de compensar a incapacidade de dar à luz com a construção de instituições de dominância, e, tal
como Fisher, situou essa “descoberta” no período da descoberta da domesticação de animais. [ 82 ]
Todas essas hipóteses, embora nos conduzam a direções interessantes, pecam pela tendência a buscar explicações de causa única; e as que embasam seus argumentos em descobertas relacionadas à pecuária estão, de fato, erradas. A pecuária foi introduzida, ao menos no Oriente Próximo, em cerca de 8 mil a.C., e temos evidências de sociedades relativamente igualitárias, como em Çatal Hüyük, que praticaram a pecuária 2 mil a 4 mil anos depois.
Portanto, não pode haver uma relação causal. Parece-me bem mais provável que a ocorrência de conflitos intertribais durante períodos de escassez econômica tenha fomentado a ascensão ao poder de homens que tenham realizado grandes feitos militares. Como discutiremos mais adiante, o grande prestígio e a reputação de que gozavam podem ter aumentado a propensão a exercer autoridade sobre as mulheres e, depois, sobre os homens da mesma tribo. Mas apenas esses fatores não são suficientes para explicar a vasta mudança ocorrida na sociedade com o advento do sedentarismo e da agricultura. Para entender esse panorama em toda a sua complexidade, nosso modelo teórico deve agora levar em consideração a prática do comércio de mulheres. [ 83 ]
O comércio de mulheres, um fenômeno observado em sociedades tribais em diversas regiões pelo mundo afora, foi identificado pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss como a principal causa da subordinação feminina. Pode assumir várias formas, tais como a remoção forçada de mulheres de suas tribos (roubo de noivas); defloramento ritual ou estupro; casamentos arranjados. É sempre precedido de tabus sobre endogamia e pela doutrinação de mulheres, da mais tenra infância em diante, para a aceitação de sua
obrigação para com seus parentes no sentido de consentir com casamentos impostos. Lévi-Strauss diz:
A relação total de comércio que constitui o casamento não é estabelecida entre um homem e uma mulher [...] mas entre dois grupos de homens, e a mulher representa apenas um dos objetos na transação, não uma das partes. [...] Isso é verdadeiro mesmo quando os sentimentos da garota são levados em consideração, como, aliás, costuma ser o caso. Ao consentir com a união proposta, ela precipita ou permite que a transação se efetue; ela não pode alterar sua natureza. [ 84 ]
Lévi-Strauss explica que, nesse processo, mulheres são
“reificadas”; passam a ser desumanizadas e vistas mais como coisas do que como seres humanos.
Inúmeras antropólogas feministas aceitaram essa posição e elaboraram o tema. A matrilocalidade estrutura o parentesco de forma que um homem deixe sua família de origem para morar com a esposa ou a família da esposa. A patrilocalidade estrutura o parentesco de modo que a mulher tenha de deixar sua família de origem e morar com o marido ou a família dele. A observação desse fato gerou a suposição de que a mudança no parentesco, de laços matrilineares para patrilineares, seria um ponto decisivo na relação entre os sexos, coincidindo com a subordinação das mulheres. Mas como e por que esse sistema se desenvolveu? Já discutimos o cenário no qual os homens, possivelmente recém-alçados ao poder em razão de suas habilidades para a guerra, coagiram mulheres contra a vontade delas. Mas por que as mulheres eram comercializadas, e não os homens? C. D. Darlington oferece uma explicação. Ele vê a exogamia como uma inovação cultural que se torna aceita por proporcionar uma vantagem evolutiva. Propõe a
existência de um desejo instintivo nos seres humanos de controlar a população para a “densidade ideal” em determinado ambiente. As tribos conseguem isso por meio de controle sexual, de rituais que designam homens e mulheres para papéis sexuais apropriados, e recorrendo ao aborto, ao infanticídio e à homossexualidade quando necessário. De acordo com esse argumento evolucionista em essência, o controle populacional tornou obrigatório o controle sobre a sexualidade feminina. [ 85 ]
Existem outras explicações possíveis: supondo-se que homens adultos fossem comercializados entre as tribos, o que garantiria a lealdade deles à nova tribo? O laço entre homens e sua prole ainda não era forte o bastante para assegurar que eles fossem submissos pelo bem dos filhos. Os homens seriam capazes de atos de violência contra os integrantes da tribo estranha; com a experiência em caça e viagens de longa distância, poderiam escapar facilmente e depois retornar como guerreiros em busca de vingança. As mulheres, por outro lado, seriam coagidas com mais facilidade, muito provavelmente por meio do estupro. Uma vez casadas ou mães, seriam leais aos filhos e aos parentes dos filhos, e assim criariam laços fortes com a tribo de afiliação. Foi assim, de fato, que a escravidão se desenvolveu ao longo da história, como veremos mais adiante. Mais uma vez, a função biológica da mulher a tornou mais adaptável para esse novo papel de fantoche, criado pela cultura.
Pode-se também admitir que não mulheres, mas crianças de ambos os sexos, tenham sido usadas como fantoches a fim de assegurar a paz entre as tribos, uma vez que eram utilizadas com frequência no período histórico entre as elites dominantes. É
provável que a prática do comércio de mulheres tenha começado
assim. Crianças de ambos os sexos eram comercializadas e, na maturidade, casavam-se na nova tribo.
Boulding, sempre destacando a “agência” das mulheres, entende que eram elas – na função de zeladoras do lar – que tratavam das negociações necessárias que levavam à cópula intertribal. As mulheres desenvolviam flexibilidade e sofisticação culturais por meio do papel de elo entre tribos. Retiradas da própria cultura, abarcavam duas culturas e aprendiam os costumes de ambas. O conhecimento
obtido daí pôde dar a elas acesso a poder e com certeza influência. [
Considero as observações de Boulding úteis para reconstruir o processo gradual da instituição do comércio de mulheres, que estas podem ter iniciado, ou do qual podem ter participado. Na literatura antropológica, temos alguns exemplos de rainhas, no papel de chefe de estado, que adquiriam muitas “esposas”, para as quais depois arranjavam casamentos que serviam para aumentar a riqueza e a influência da própria rainha. [ 87 ]
Se meninos e meninas eram comercializados como fantoches, e sua prole, incorporada à nova tribo, é claro que a tribo com mais meninas do que meninos aumentaria de população com mais rapidez em comparação com a tribo que aceitasse mais meninos.
Enquanto as crianças eram uma ameaça à sobrevivência da tribo ou, na melhor das hipóteses, uma desvantagem, tais distinções não eram observadas ou não importavam. Mas se, em razão de mudanças no ambiente ou na economia da tribo, as crianças passassem a se tornar um recurso, como possível força de trabalho, supõe-se que o comércio de crianças de ambos os sexos tenha dado lugar ao comércio de mulheres. Os fatores que originam esse
desenvolvimento são bem explicados, creio, por antropólogos estruturalistas marxistas.
O processo que discutimos agora ocorre em épocas diferentes, em diferentes partes do mundo; ainda assim, apresenta regularidade de causas e resultado. Aproximadamente na mesma época em que a caça/coleta ou a horticultura dá lugar à agricultura, o sistema de parentesco tende a mudar de matrilinear para patrilinear, e a propriedade privada se desenvolve. Existe, como já vimos, discordância sobre a sequência de eventos. Engels e seus seguidores acham que a propriedade privada veio antes, causando
“a grande derrota histórica do sexo feminino”. Lévi-Strauss e Claude Meillassoux acreditam que foi pelo comércio de mulheres que a propriedade privada acabou sendo criada. Meillassoux oferece uma descrição detalhada do estágio de transição.
Em sociedades de caçadores-coletores, homens, mulheres e crianças participam da produção e consomem o que produzem. As relações sociais entre eles são instáveis, sem estrutura, voluntárias.
Não existe a necessidade de estruturas de parentesco ou transações planejadas entre as tribos. Esse modelo conceitual (para o qual é um tanto difícil encontrar exemplos reais) dá lugar a um modelo de transição, um estado intermediário – a sociedade de horticultura. A colheita, com base em raízes e mudas, é instável e sujeita a variações climáticas. A incapacidade de manter a colheita ao longo de vários anos faz com que as pessoas dependam de caça, pesca e coleta como complemento alimentar. Nesse período, quando abundam os sistemas matrilineares e matrilocais, a sobrevivência do grupo exige o equilíbrio demográfico de homens e mulheres. Meillassoux argumenta que a vulnerabilidade biológica das mulheres no parto fez as tribos buscarem mais mulheres de
outros grupos, e que essa tendência ao roubo de mulheres levou a constantes conflitos intertribais. No processo, surgiu a cultura do guerreiro. Outra consequência desse roubo de mulheres é que as mulheres conquistadas eram protegidas pelos homens que as haviam conquistado ou por toda a tribo conquistadora. Como resultado, as mulheres eram consideradas bens, coisas – elas foram reificadas –, enquanto os homens as reificavam porque as conquistaram e protegeram. A capacidade reprodutiva das mulheres é reconhecida primeiro como um recurso da tribo; depois, conforme se desenvolvem as elites dominantes, é adquirida como propriedade de um grupo aparentado específico.
Isso ocorre com o desenvolvimento da agricultura. As condições materiais da agricultura de grãos exigem coesão e continuidade do grupo ao longo do tempo, assim fortalecendo a estrutura da família.
Para fazer a colheita, trabalhadores de um ciclo de produção ficam devendo alimentos e sementes a trabalhadores de um ciclo de produção anterior. Como a quantidade de alimentos depende da disponibilidade de trabalho, a produção passa a ser a principal preocupação. Isso traz duas consequências: fortalece a influência de homens mais velhos e aumenta o incentivo da tribo para a aquisição de mais mulheres. Na sociedade plenamente
desenvolvida com base na agricultura de arado, mulheres e crianças são indispensáveis ao processo de produção, que é cíclico e trabalhoso. Crianças tornam-se, assim, um recurso econômico.
Nesse estágio, as tribos buscam adquirir o potencial reprodutivo das mulheres, em vez das mulheres em si. Homens não geram bebês diretamente; assim, as mulheres, não os homens, é que são comercializadas. Essa prática torna-se institucionalizada em tabus de incesto e em padrões de casamento patrilocal. Homens mais
velhos, que oferecem continuidade no conhecimento sobre produção, passam a mistificar esses “segredos” e exercem poder sobre os homens mais novos por meio do controle de alimentos, conhecimento e mulheres. Eles controlam o comércio de mulheres, impõem restrições sobre seu comportamento sexual e obtêm propriedade privada delas. Os homens mais novos devem oferecer serviços de mão de obra para os mais velhos em troca do privilégio de conseguir acesso a mulheres. Sob tais circunstâncias, as mulheres também se tornam presa de guerra para os guerreiros, o que encoraja e reforça a dominância de homens mais velhos sobre a comunidade. Por fim, a “grande derrota histórica das mulheres”
por meio da destruição da matrilinearidade e da matrilocalidade torna-se possível e se prova vantajosa para as tribos que as conquistam.
Deve-se notar que, no esquema de Meillassoux, o controle sobre a reprodução (sexualidade feminina) precede a obtenção de propriedade privada. Assim, Meillassoux subverte Engels, assim como Marx fez com Hegel.
A obra de Meillassoux cria novas perspectivas no debate sobre origens, embora críticas feministas devam se opor a seu modelo androcêntrico, no qual as mulheres representam apenas vítimas passivas. [ 88 ] Devemos também observar que o modelo de Meillassoux deixa claro que não é a mulher que é reificada, mas sim sua capacidade reprodutiva, ainda que ele e outros antropólogos estruturalistas continuem a falar da reificação de mulheres. A distinção é importante, e a discutiremos mais adiante. Existem outras perguntas que a teoria dele não responde. Como os homens mais velhos conseguiram o controle sobre a agricultura? Se nossas especulações iniciais sobre relações sociais entre os sexos em
tribos de caçadores-coletores estiverem corretas, e se o fato em geral aceito de que foram as mulheres que desenvolveram a horticultura for preciso, seria esperado que as mulheres controlassem o produto do trabalho agrícola. Mas neste ponto devemos considerar outros fatores.
Nem todas as sociedades passaram pelo estágio da horticultura.
Em muitas, o pastoreio e a pecuária, sozinhos ou em conjunto com atividades de coleta, precederam o desenvolvimento da agricultura.
É muito provável que a pecuária tenha sido desenvolvida pelos homens. Era uma ocupação que gerava o acúmulo de excedentes de gado, carne ou peles. Seria de esperar que esses excedentes fossem acumulados pelos homens que o geravam. Além disso, a agricultura de arado a princípio exigia a força de homens, e com certeza não era uma ocupação que mulheres grávidas ou lactantes teriam escolhido, exceto de forma auxiliar. Assim, a prática econômica da agricultura reforçou o controle dos homens sobre os excedentes, que também podem ter sido obtidos em conflitos intertribais. Outro fator que pode ter contribuído para o desenvolvimento da propriedade privada foi a distribuição assimétrica de tempo livre. As atividades de horticultura são mais produtivas do que a coleta de subsistência e geram tempo livre. Mas a distribuição deste é desigual: homens se beneficiam mais do que mulheres, pois as atividades de preparação de alimentos e a criação dos filhos continuam a cargo das mulheres. Assim, presume-se que o homem podia usar o novo tempo livre para desenvolver suas habilidades artesanais, iniciar rituais para aumentar seu poder e influência e controlar os excedentes. Não quero sugerir aqui determinismo ou manipulação consciente – é exatamente o contrário. As coisas se desenvolveram de certa maneira, causando
determinadas consequências que nem homens nem mulheres planejaram. Eles não tinham como saber das consequências, da mesma forma que os homens modernos que deram início ao admirável mundo novo da industrialização não tinham como saber de suas consequências em relação à poluição e seu impacto sobre a ecologia. Quando a consciência do processo e de suas consequências se desenvolveu, já era tarde demais – pelo menos para as mulheres – para interromper o processo.
O antropólogo dinamarquês Peter Aaby aponta que as evidências de Meillassoux eram amplamente baseadas no modelo europeu, envolvendo a interação entre atividades de horticultura e pecuária, e em exemplos de indígenas das planícies da América do Sul. Aaby cita casos, tais como os de tribos de caçadores da Austrália, nos quais há o controle de mulheres, sem que existam atividades de horticultura. Depois ele cita o caso dos iroqueses, uma sociedade na qual mulheres não eram nem reificadas nem dominadas, como exemplo de adeptos da horticultura que não recorrem à dominância masculina. Ele argumenta que, em condições ecologicamente favoráveis, seria possível manter o equilíbrio demográfico dentro de uma tribo sem a necessidade da importação de mulheres. Não apenas as relações de produção, mas também “ecologia e reprodução sociobiológica são fatores determinantes ou críticos
[...]”. [ 89 ] Entretanto, como todas as sociedades de agricultura reificaram a capacidade reprodutiva das mulheres, não a dos homens, deve-se concluir que tais sistemas têm uma vantagem no que diz respeito à expansão e apropriação de excedentes em relação aos sistemas baseados na complementaridade entre os sexos. Nestes, não existem meios de forçar os produtores a aumentar a produção.
As ferramentas neolíticas eram relativamente simples, então qualquer um poderia fabricá-las. Terras não eram recursos escassos. Assim, nem ferramentas nem terras representavam oportunidades para apropriação. Mas, em uma situação na qual condições ecológicas e irregularidades na reprodução biológica ameaçavam a sobrevivência do grupo, as pessoas procuravam mais reprodutores – ou seja, mulheres. A apropriação de homens, tais como prisioneiros (o que ocorre apenas em estágio posterior), não supriria as necessidades de sobrevivência do grupo. Portanto, a primeira apropriação de propriedade privada é a apropriação do trabalho de mulheres como reprodutoras. [ 90 ]
Aaby conclui:
A conexão entre a reificação de mulheres de um lado e o Estado e a propriedade privada do outro é o exato oposto do que Engels e seus seguidores propõem. Sem a reificação de mulheres como característica socioestrutural historicamente determinada, a origem da propriedade privada e do Estado permanecerá inexplicável. [ 91 ]
Se seguirmos o argumento de Aaby, que considero persuasivo, devemos concluir que, durante a revolução da agricultura, a exploração de trabalho humano e a exploração sexual de mulheres se uniram de forma inextricável.
A história da civilização é a história de homens e mulheres que lutam motivados por necessidade, dependência vulnerável da natureza, até a liberdade e o domínio parcial desta. Nessa luta, mulheres foram limitadas por mais tempo a atividades básicas da espécie em comparação com os homens, portanto, eram mais vulneráveis a desvantagens. Meu argumento faz uma distinção
categórica entre necessidade biológica, à qual tanto homens quanto mulheres foram submetidos e se adaptaram, e hábitos e instituições construídos culturalmente, que colocaram à força mulheres em papéis subordinados. Tentei mostrar como as mulheres acabaram concordando com uma divisão sexual do trabalho, que em algum momento as colocaria em desvantagem, sem poder prever as consequências posteriores.
A declaração de Freud, que discuti em contexto diferente, de que
“anatomia é destino” para mulheres, está errada, porque é desprovida de contexto histórico e projeta o passado distante no presente sem reconhecer as mudanças ocorridas ao longo do tempo. Pior, essa declaração é interpretada como uma prescrição para o presente e o futuro: não apenas a anatomia é destino para as mulheres, como deve sê-lo. O que Freud deveria ter dito é que, para as mulheres, anatomia já foi destino. Essa declaração é precisa e leva em consideração o contexto histórico. O que já foi não é mais; não precisa nem deve mais sê-lo.
C
M
A
, saímos do campo da especulação
puramente teórica para a consideração de provas com base em dados antropológicos de sociedades primitivas no tempo histórico.
Levamos em consideração evidências materiais, tais como ecologia, clima e fatores demográficos, e destacamos a complexa interação de vários fatores que devem ter afetado os desenvolvimentos que tentamos entender. Não podemos apresentar evidências sólidas dessas transições pré-históricas senão por inferência e comparação com o que sabemos. Como veremos, a hipótese explicativa que propusemos pode ser comparada com evidências históricas posteriores em vários pontos.
Há poucos fatos dos quais podemos ter certeza com base em evidências arqueológicas. Em algum momento durante a revolução da agricultura, sociedades relativamente igualitárias, com divisão sexual do trabalho baseada em necessidade biológica, deram espaço a sociedades mais estruturadas, nas quais eram comuns a propriedade privada e o comércio de mulheres com base no tabu do incesto e na exogamia. As primeiras sociedades eram muitas vezes matrilineares e matrilocais, enquanto as últimas sociedades sobreviventes eram, de modo predominante, patrilineares e patrilocais. Não existem evidências de um processo inverso, passando de patrilinearidade para matrilinearidade. As sociedades mais complexas faziam a divisão do trabalho não mais com base apenas em distinções biológicas, mas também em hierarquia e no poder de alguns homens sobre outros e todas as mulheres.
Inúmeros acadêmicos concluíram que a mudança descrita aqui coincide com a formação de estados arcaicos. [ 92 ] Por isso, é com esse período que deve acabar a especulação teórica e começar a pesquisa histórica.
TRÊS
A ESPOSA SUBSTITUTA E O
FANTOCHE
O
aldeias neolíticas esparsas se tornaram
comunidades agrícolas, depois centros urbanos, e enfim estados, é chamado de “revolução urbana” ou “ascensão da civilização”. É um processo que ocorre em épocas diferentes, em locais diferentes, no mundo todo: primeiro, nos grandes vales de rios e costas da China, da Mesopotâmia, do Egito, da Índia e da Mesoamérica; depois na África, no norte da Europa e na Malásia. Estados arcaicos caracterizam-se em toda parte pelo surgimento de classes e hierarquias relacionadas à propriedade; produção de bens consumíveis com alto grau de especialização e comércio organizado entre regiões distantes; urbanismo, aparecimento e consolidação de elites militares; realeza; institucionalização da escravidão; transição de dominância por parentesco a famílias patriarcais como principal forma de distribuição de posses e poder. Na Mesopotâmia, também ocorrem mudanças importantes na posição das mulheres: a subordinação feminina dentro da família passa a ser institucionalizada e codificada pela lei; a prostituição se estabelece e
se regula; com crescente especialização de trabalho, as mulheres são excluídas aos poucos de determinadas ocupações e profissões.
Após a invenção da escrita e do estabelecimento do ensino formal, as mulheres são excluídas do mesmo acesso a tal educação. As cosmogonias, que oferecem a base para o estado arcaico, subjugam divindades femininas a deuses masculinos superiores e apresentam mitos de origem que legitimam a supremacia masculina. [ 93 ]
A maioria das teorias sobre a origem do Estado arcaico são de causa única, de “Primeiro Motor Imóvel”, tal como na metafísica aristotélica, [ 94 ] destacando como causas, por sua vez, as seguintes: acúmulo de capital em razão de novas tecnologias, o que resulta em estratificação e luta de classes (Marx, Engels, Childe); o surgimento de burocracias sólidas por causa da necessidade de desenvolvimento de projetos de irrigação em grande escala (Wittfogel); aumento da população e crescimento populacional (Fried); crescimento populacional em um ambiente limitado, resultando em militarismo, que, por sua vez, origina a formação do Estado (Carneiro). Cada uma dessas explicações foi criticada e substituída por explicações mais complexas e guiadas pelo sistema, evidenciando a interação de uma variedade de fatores. Robert McC.
Adams, embora reconhecesse a importância de fatores ambientais e tecnológicos no crescimento das civilizações, enfatizou que o núcleo da revolução urbana são as mudanças na organização social. A intensificação da produção agrícola gerada pela especialização resultou em uma base alimentar estável, que permitiu o aumento da população. A redistribuição de alimentos era feita pela comunidade do templo, tendo esse grupo o poder de coagir fazendeiros e pastores para que produzissem excedentes. Isso podia ser feito com
o aumento da irrigação, que, por sua vez, aumentava o poder da elite do templo e gerava distinções mais acentuadas de riqueza entre os que possuíam e os que não possuíam terras próximas ao fornecimento constante de água. Essa formação inicial de classes originou outra mudança importante na estrutura da sociedade – de baseada em parentesco para baseada em classes. [ 95 ]
É essa mudança que tem particular importância para a história das mulheres.
Muitas
autoras
feministas
chamaram
atenção
recentemente para esse aspecto da revolução urbana, algo que será explorado mais adiante neste capítulo. A antropóloga Rayna Rapp aponta o conflito entre grupos de parentes e elites em ascensão e conclui que “as estruturas de parentesco foram as que obtiveram maior fracasso no processo de civilização”.
Em sociedades pré-Estado, a produção social total era organizada pelas relações de parentesco. Conforme os estados foram surgindo gradualmente, as estruturas de parentesco foram desmanteladas e transformadas para manter a existência e a legitimação de domínios politizados mais poderosos. Nesse processo [...] as mulheres foram subordinadas com (e em relação a) o parentesco. [ 96 ]
No caso de sociedades mesopotâmicas, precisaremos examinar em detalhes como esse processo de transformação ocorreu e por que aconteceu daquela maneira. Não devemos imaginá-lo como um processo linear, que se desenvolveu de modo uniforme em diferentes regiões, mas como um acréscimo lento de mudanças incrementais, que ocorreu em velocidades diferentes, em regiões diferentes e com resultados diversos. Nas palavras de Charles Redman, deve “ser conceituado como uma série de processos
incrementais que interagiram e foram ativados por condições culturais e ecológicas favoráveis, e continuaram a se desenvolver por meio de interações mutuamente reforçadas”. [ 97 ] No total, foram três os estágios da revolução urbana na Mesopotâmia: o surgimento das cidades-templos, o crescimento das cidades-Estados e o desenvolvimento de estados nacionais.
Discutimos antes sobre as cidades neolíticas de tamanho considerável, tais como Çatal Hüyük e Hacilar, na Anatólia, no sexto e no oitavo milênios a.C. Mesmo nesses primeiros assentamentos, os costumes relacionados aos enterros revelam diferenças de riqueza e status entre os habitantes, bem como a existência de especialização em habilidades artesanais e comércio distante.
Pode-se presumir que existiam comunidades semelhantes em aldeias e cidades da região da Mesopotâmia. Embora Çatal Hüyük e Hacilar tenham desaparecido como assentamentos antes de 5000
a.C., as comunidades rurais na Mesopotâmia se espalharam aos poucos em direção às planícies do sul. Populações crescentes em um espaço limitado de terra, que era fértil apenas se houvesse água disponível, levaram, de forma inevitável, ao desenvolvimento da irrigação. Isso resultaria em distinções de riqueza, dependendo da localização da terra de um fazendeiro, e em tensões sobre direitos e interesses entre propriedades comuns e privadas.
Em um espaço limitado em termos ecológicos, as populações crescentes só podem ser abastecidas com o aumento da produção agrícola ou com a expansão. O primeiro fator originou o desenvolvimento das elites, e o segundo resultou no desenvolvimento do militarismo – a princípio de maneira voluntária, depois, profissional. Na Mesopotâmia, essas formações sociais ocorreram como cidades-templos, que se desenvolveram no quarto
e no terceiro milênios a.C. [ 98 ] Em condições de conflitos intertribais, a existência de cidades é como um ímã para as populações de aldeias próximas, que migram para a cidade em busca de trabalho ou proteção em tempos de guerra ou escassez.
Essas populações se tornaram trabalhadores em grandes empreendimentos, que viabilizaram a construção de enormes templos e projetos de irrigação centralizados. O templo reunia no complexo atividades religiosas, políticas e econômicas. Evidências arqueológicas mostram que, de 3000 a.C. em diante, as hierarquias do templo coordenaram a construção e manutenção de um sistema de canais de vários quilômetros de extensão, que exigiu a cooperação de diversas comunidades. O financiamento desses grandes empreendimentos, a manutenção de equipes de trabalho pagas em rações e o investimento de excedentes na produção em massa de determinados produtos artesanais para exportação, tudo isso resultou na consolidação do poder e na especialização de funções nas mãos da burocracia do templo. O templo fomentou também o desenvolvimento de trabalhos artesanais, o que implica o fortalecimento da especialização nesses trabalhos, entre eles, a metalurgia e a produção em grande escala de tecidos para exportação. O templo controlava a matéria-prima e monopolizava o comércio. Por sua vez, a administração desses grandes projetos fomentou o surgimento de elites com habilidades administrativas e acabou resultando no desenvolvimento de sistemas de informações padronizados.
Os primeiros sistemas de símbolos, ou sinais, desenvolveram-se com as atividades comerciais e de contabilidade. Desses sinais, desenvolveram-se sistemas de contagem e escrita. [ 99 ] As primeiras tábuas de argila na Suméria eram listas de ração;
registros de tributos e doações; e listas de nomes divinos. A invenção da escrita em seu pleno desenvolvimento, que incorporava elementos gramaticais, ocorreu pouco depois de 3000 a.C. na Suméria. Isso foi um divisor de águas no desenvolvimento da civilização mesopotâmica. Em geral, acredita-se que a escrita surgiu nos templos e palácios, sendo um conhecimento que fortalecia muito o papel de liderança das elites. As escolas formavam escribas sistematicamente para que atendessem todas as necessidades do governo, entre elas, conhecimento sacro. Depois, a organização de arquivos institucionalizou ainda mais a administração de atividades econômicas e políticas nos templos e palácios. É com a invenção da escrita e a preservação de registros escritos que a história começa, é claro.
O período proto-histórico (cerca de 3500-2800 a.C.) coincide com o antigo período arqueológico da dinastia de Uruk V. Pode-se presumir que, durante esse período, as elites militares se desenvolveram junto às elites do templo e logo se tornaram uma força rival e independente na sociedade. Militares poderosos primeiro tornavam-se chefes em aldeias e depois estabeleciam dominância sobre terras e rebanhos antes pertencentes ao templo, deixando aos poucos os sacerdotes em segundo plano.
Examinaremos em detalhes esse processo no caso de Urukagina de Lagash. [ 100 ] Depois, os mais poderosos desses chefes se autonomeavam reis, usurpando o poder dos templos e tratando as propriedades deles como suas. Nos séculos seguintes de conflitos entre cidades, o mais poderoso desses soberanos reunia diversas dessas cidades-Estados em um reino ou estado nacional. [ 101 ]
O desenvolvimento do militarismo, aliado à necessidade de uma grande força de trabalho para a construção de projetos públicos,
originou a prática de transformar prisioneiros em escravos e a consequente institucionalização da escravidão – e, com isso, a institucionalização de classes estruturadas. No próximo capítulo, discutiremos esse desenvolvimento e seu impacto sobre as mulheres em detalhes. O que nos interessa aqui é que todos esses vários processos interativos e de reforço mútuo caminharam para fortalecer a dominância masculina na vida pública e nas relações externas, enquanto enfraqueceram o poder de estruturas comuns e baseadas em relações de parentesco. No período proto-histórico, manteve-se a importância de grupos de parentes, alguns com títulos de terras, outros recrutando associações de artesãos ou organizando recrutamentos para o serviço militar. Em sua comparação da revolução urbana entre Mesopotâmia (3900-2300
a.C.) e México Central (100 a.C.-1500 d.C.), Robert McC. Adams encontra uma função semelhante realizada por grupos de parentes mexicanos, os calpulli, que distribuem riqueza e poder no Estado novo. Eles formam guildas, fornecem homens para o exército e designam escravos para o Estado. Conforme o Estado se consolida, solidificam-se mudanças nas estruturas de parentesco. [ 102 ]
No Império Inca, os conquistadores estenderam seu domínio, obrigando as aldeias conquistadas a fornecer mulheres virgens para servir ao Estado e como possíveis esposas de nobres incas. Essa interferência nos padrões sexuais e maritais dos povos conquistados teve a dupla função de enfraquecer as estruturas de parentesco e destacar grupos específicos de parentes para que formassem alianças com os conquistadores. [ 103 ] Veremos um processo semelhante em andamento na Mesopotâmia, na prática de destruir cidades conquistadas, matar os homens e condenar mulheres e crianças à escravidão na terra dos conquistadores, e
também no estabelecimento de alianças de casamento entre soberanos para consolidar a cooperação interestadual.
O trabalho arqueológico na Mesopotâmia em tempos modernos descobriu dezenas de milhares de tábuas de argila que documentam a ordem social na Suméria, no terceiro milênio a.C., e na Babilônia, no segundo milênio a.C., o que usaremos para enfatizar as mudanças na posição das mulheres. Tais fontes podem ser comparadas e relacionadas com selos, estátuas e outros artefatos, e também com as habituais evidências arqueológicas de túmulos e cidades. Como muitas das tábuas de argila contêm poemas, hinos e leis, além de indícios mais mundanos de transações comerciais e domésticas, podemos reconstruir essa civilização da Idade do Bronze com mais evidências do que ocorre com outras civilizações iniciais. Como acontecerá com boa parte do período histórico posterior a esse, é mais fácil encontrar evidências de mulheres de classes altas do que de mulheres de classes mais baixas. Uma vez que a intenção não é escrever a história social das mulheres no Antigo Oriente Próximo, mas sim traçar a evolução dos conceitos de gênero, nosso relato selecionará modelos e momentos significativos em vez de tentar fazer uma reconstrução histórica completa.
Uma das mais antigas imagens de mulher na Suméria é a cabeça cuidadosamente esculpida de Uruk, retratando uma mulher de muita dignidade e beleza, que pode ter sido uma sacerdotisa, uma rainha ou uma deusa. Essa escultura singular, datada entre 3100 e 2900
a.C., personifica os importantes papéis desempenhados por mulheres aristocráticas, que eram ativas na administração de templos e palácios e na economia (ver Ilustração 5, na seção Ilustrações).
É característico da liderança, nesse período inicial, que haja essa fusão de poder divino e secular personificado pelo soberano. A lista real, documento escrito em cerca de 1800 a.C., registra as sucessivas dinastias das maiores cidades da Mesopotâmia até o terceiro milênio. Embora as cronologias estejam um tanto superestimadas, arqueólogos confirmaram alguns dos dados com outras evidências. As primeiras dinastias sumérias encontravam-se nas cidades de Kish, Warka e Ur. De acordo com a lista real, a fundadora da dinastia de Kish foi a rainha Ku-Baba, que, segundo a lista, reinou por cem anos. Ela é identificada como ex-taberneira, ocupação que a situa em um lugar marginalizado pela sociedade.
Mais tarde, foi identificada como a deusa Kubaba, venerada no norte da Mesopotâmia. [ 104 ] Ela é a única mulher cuja descrição na lista real diz que reinou por mérito próprio, mas a fusão de sua personalidade histórica com a de uma divindade não é diferente da do semideus mítico Gilgamesh, soberano de Warka, que supostamente reinou no período dinástico antigo e cuja existência histórica não se sustenta por evidências sólidas, embora suas façanhas estejam imortalizadas na epopeia de Gilgamesh.
As escavações feitas em Ur em 1922-1934 por Sir Leonard Woolley em nome do Museu Britânico nos oferecem uma compreensão surpreendente da estrutura social da sociedade suméria no período dinástico antigo, por volta de 2500 a.C. A descoberta de 1.850 túmulos, entre os quais 16 túmulos reais, rendeu informações importantes sobre costumes relacionados a enterros em uma sociedade caracterizada por estratificação de classes, além de riqueza e desenvolvimento artístico, bem como com tecnologia razoavelmente avançada.
Em um dos túmulos, um selo de lápis-lazúli com a inscrição
“Ninbanda, a rainha, esposa de Mesanepada” identifica uma mulher, que pode ter sido esposa de um rei da primeira dinastia de Ur. As evidências da existência de seu marido são importantes porque confirmam a precisão histórica da lista real suméria. [ 105 ]
São de particular interesse para nós os achados do túmulo real 789, de um rei cuja identidade não foi estabelecida com clareza, e do túmulo 800, da rainha Pu-abi, que provavelmente viveu por volta de 2500 a.C. [ 106 ] A identidade dela foi estabelecida por um selo cilíndrico de lápis-lazúli com a inscrição de seu nome encontrado junto ao corpo. Nos dois casos, o corpo real foi encontrado em uma câmara de pedra, com vários outros, presume-se que de servos.
Essas evidências de sacrifício humano prestam esclarecimento a um conjunto de crenças e valores religiosos associados apenas a esse período inicial. É significativo o fato de as centenas de outros túmulos nos cemitérios de Ur não indicarem sacrifício humano; apenas os túmulos reais o fazem. Também é notável que duas rainhas tenham sido enterradas com seus servos, assim como os reis, o que indicaria ser a realeza o objeto de reverência com sacrifício humano, e que nesse período inicial essa qualidade divina pudesse estar presente tanto em uma mulher quanto em um homem. [ 107 ]
Nos túmulos 789 e 800, a câmara estava localizada no fim de um fosso fundo, que formava o túmulo coletivo para o séquito da pessoa em questão. O corpo da rainha foi encontrado em um esquife; ela foi enterrada com um adorno luxuoso na cabeça, feito de ouro, lápis-lazúli e cornalina e uma taça requintada na mão. Duas criadas estavam curvadas diante de seu esquife, cercado por oferendas feitas de rico trabalho em metal e pedra. Woolley supôs
que, durante a cerimônia de sepultamento, a rainha e seus servos pessoais eram enterrados primeiro, na câmara mais baixa do túmulo, que depois era selada. A segunda fase da cerimônia de sepultamento ocorria no fosso ao redor da câmara, onde acendiam fogueiras, realizavam um banquete e faziam oferendas aos deuses.
Então, os principais servos domésticos e cortesãos eram agrupados no fosso. Devia ocorrer algum tipo de cerimônia, porque os músicos no fosso foram enterrados ainda com os dedos nos instrumentos. É
provável que os que eram feitos de sacrifícios humanos fossem drogados ou envenenados primeiro, como evidenciado pela presença de copos perto de cada corpo, e depois o fosso era murado e coberto com terra. [ 108 ]
No túmulo 789, o túmulo do rei, foram encontradas ossadas de seis soldados. Presume-se que fossem guardiões do fosso, que haviam conduzido carroças de quatro rodas puxadas por bois. Em cada carroça, o corpo do condutor permanecia na posição apropriada para a tarefa. Contra a parede havia nove corpos de mulheres adornadas com joias finas; no total, eram 63 homens e mulheres enterrados com o rei. Em data posterior, parte da entrada para esse túmulo foi reutilizada para o túmulo 800, o túmulo da rainha. Nessa entrada havia uma espécie de trenó puxado por bois, uma lira e outros utensílios domésticos valiosos, além de ossadas de dez homens e dez mulheres. As mulheres usavam adornos de cabeça elaborados e joias, e podem ter sido instrumentistas da corte.
Outro túmulo, chamado de Grande Fosso da Morte, continha os corpos de seis homens e 68 mulheres com ricos adornos.
Novamente, seis guardas estavam alinhados na entrada; as mulheres eram quatro harpistas e 64 damas de companhia usando
fitas de ouro e prata nos cabelos. A disposição dos túmulos, a decoração e os objetos deixam claro que, no caso de túmulos coletivos, não apenas havia neles servos pessoais, provavelmente escravos, enterrados com a realeza, como também a maioria dos outros corpos era de cortesãos e pessoas ilustres. De acordo com Woolley:
Sem dúvida, essas pessoas não eram escravos ordinários mortos como gado, mas pessoas honoráveis, de uniforme, que participaram, espera-se, voluntariamente de um ritual que, para elas, era apenas a passagem de um mundo para outro, de servir a um deus na terra para servir a esse mesmo deus em outra esfera. [ 109 ]
O último ponto é crucial para a interpretação dos achados nos cemitérios de Ur. Sabemos que, em período posterior, os reis sumérios eram idolatrados após a morte e até durante a vida. Essas evidências de sacrifício humano parecem indicar que a prática começou antes, no período proto-histórico. Se o rei ou a rainha tinha atributos divinos e incorporava a divindade, servir a eles em outro mundo, o mundo dos deuses, devia significar não o supremo sacrifício, mas a suprema honra. As ossadas nas covas não apresentavam marcas de violência ou luta, portanto, são testemunhas silenciosas de uma crença na divindade de reis e rainhas. [ 110 ] Outra implicação interessante dos achados de Ur diz respeito ao evidente desperdício de bens funerários caros e manufaturados com excelência. Como estes estavam sobretudo em túmulos reais, o enterro de tais bens pode ter tido alguma função para o sucessor real. O desperdício de recursos a serviço dos deuses é um ritual que estabelece a legitimidade do sucessor, que
podia assumir a autoridade ao renunciar à riqueza de seu antecessor. Isso confirma a interpretação de que “rituais ainda eram necessários para manter a autoridade do rei durante períodos de sucessão”, um fato que outras evidências históricas tendem a sustentar. [ 111 ] O enterro dos principais servos e criados do rei era também uma garantia de que o novo rei começaria do zero, com o próprio grupo de seguidores fiéis.
Os túmulos reais de Ur nos contam que as rainhas
compartilhavam de status, poder, riqueza e atribuição divina imputados aos reis. Eles nos contam sobre a riqueza e o alto status de algumas mulheres em cortes sumérias, sobre suas variadas habilidades artesanais, além dos óbvios privilégios econômicos. Mas o predomínio esmagador de ossadas femininas em relação às masculinas entre os criados enterrados também demonstra a grande vulnerabilidade e dependência delas na condição de servas.
A disposição dos servos reais para seguir seus senhores até a morte refletia algumas crenças básicas da religião suméria. O
mundo e os seres humanos haviam sido criados para servir aos deuses. As pessoas não tinham livre-arbítrio, sendo governadas pela decisão dos deuses. Os deuses eram senhores, proprietários das cidades e dos templos, que governavam por meio de seus representantes humanos. Podiam ser sumos sacerdotes ou soberanos seculares que a princípio governavam como
representantes de um conselho de anciãos. Em tempos de crise, esses soberanos podiam expandir seu poder pessoal e entrar em conflito com a autoridade do templo. Soberanos seculares surgiam em diferentes cidades, em circunstâncias diversas, mas logo estabeleciam a própria base de poder. [ 112 ]
Assim, em Lagash, por volta de 2350 a.C., o soberano Lugalanda tomou o poder dos templos mais importantes – os dos deuses Ningirsu e Shulshag e o da deusa Bau –, colocando-os sob administração de uma autoridade que ele havia nomeado e que não era sacerdote, e também nomeando a si mesmo, a esposa Baranamtarra e outros membros da família como administradores do templo. Ele ainda se referia a esses templos como propriedade privada do ensi (soberano), não citava mais o nome das divindades nos documentos dos templos e cobrava impostos do sacerdócio.
Lugalanda e sua esposa se tornaram os maiores proprietários de terras. A esposa, Baranamtarra, compartilhava do poder do ensi, administrando seu patrimônio particular e o patrimônio do templo de Bau. Também enviava missões diplomáticas a estados vizinhos e comprava e vendia escravos. [ 113 ]
Felizmente, extensos registros financeiros do templo da deusa Bau foram preservados. Eles abrangem os anos de Lugalanda e de seu sucessor Urukagina, um período no qual as tensões entre rei e comunidade são visíveis e a autoridade do rei é reforçada. O breve reinado de Urukagina foi marcado por suas “reformas”, que ele registrou em forma de inscrições em edifícios. Urukagina tomou o poder de Lugalanda, alegando agir em nome de “barqueiros, pastores, pescadores e fazendeiros”, deixando também implícito que fora ajudado pelo sacerdócio. [ 114 ] No segundo ano de seu reinado, Urukagina se autoproclamou rei, assumindo o título de lugal.
As reformas que Urukagina promulgou em seu édito são a primeira tentativa documentada de estabelecer direitos básicos legais para os cidadãos. Urukagina acusou seu antecessor de ter usurpado a propriedade dos deuses nos templos e afirmou que tinha
uma aliança com o deus-cidade de Lagash para proteger dos poderosos os fracos e as viúvas. Afirmou que, sob o reinado de Lugalanda, os “homens do ensi” começaram a tomar o controle das terras que eram propriedade privada, invadindo pomares e se apropriando das frutas à força. Ao mesmo tempo, ocorrera abuso de poder do sacerdócio por meio da cobrança de impostos exorbitantes para enterros e rituais religiosos. Urukagina decretou a correção dos impostos, restringiu o poder de autoridades corruptas e governou os templos em nome dos deuses. Mas a avaliação sobre o efeito dessas reformas divide acadêmicos. Uma das escolas considera seu reinado uma espécie de revolução popular na qual homens livres lutaram contra ricos donos de escravos; outra o enxerga como um indício da transição de “economia de templo” para o poder secular e da realeza. [ 115 ] Em uma análise mais recente, K.
Maekawa vê as “reformas” de Urukagina como uma expansão do poder real, pois ele desenvolveu o conceito de realeza dotada de sanção divina e o estendeu aos domínios da esposa, a saber, o templo da deusa Bau. A equipe de trabalho desse templo cresceu muito no ano em que Urukagina se autoproclamou lugal. O conceito de realeza dotada de divindade já havia começado a se estabelecer no reinado dos antecessores de Urukagina, mas ele o concretizou ao instituir o templo de Bau como o segundo mais importante de Lagash. [ 116 ] Embora Urukagina alegasse ter ordenado as reformas sob orientação divina, para acabar com os abusos de poder ocorridos no reinado de seu antecessor, elas podem tão somente ter fortalecido sua posição. Não há registros disponíveis de outras cidades-templos, o que nos permitiria avaliar se esse desenvolvimento era algo comum – e Maekawa parece pensar que não era –, mas os documentos nos oferecem um entendimento
significativo da maneira como pode ter ocorrido a transição para essa realeza com um novo nível de autoridade.
Os documentos do reinado de Urukagina nos oferecem um olhar aterrorizante da vida das mulheres. Lê-se em um dos éditos de Urukagina: “Mulheres de outros tempos se casavam com dois homens, mas as mulheres de hoje foram obrigadas a abandonar esse crime”. [ 117 ] O édito continua e afirma que mulheres que cometiam esse “crime” na época de Urukagina eram apedrejadas, tendo sua intenção maligna inscrita nas pedras. Em outro trecho, o édito afirma que, “se uma mulher falar [...] de forma completamente desrespeitosa com um homem, sua boca será esmagada com um tijolo refratário”. [ 118 ] Analistas feministas recentes interpretaram esses “éditos” como prova da antiga prática de poliandria e de seu fim durante o regime de Urukagina. [ 119 ] Essa interpretação parece não ter consistência, uma vez que não há nenhuma outra evidência disponível, em nenhum lugar da Mesopotâmia, da prática de poliandria no terceiro milênio a.C. A interpretação de textos cuneiformes é um assunto bastante complexo e técnico, que costuma depender da corroboração de evidências de outros textos ou de artefatos arqueológicos. Assiriólogos são, não sem motivo, cautelosos ao interpretar esse édito na ausência de tais evidências.
Existem, entretanto, pelo menos duas possíveis interpretações alternativas do texto: uma é a de que faz referência a uma correção de impostos, pela qual o imposto sobre divórcio foi eliminado, acabando, assim, com o abuso que a mulher sofria quando não podia garantir o divórcio por causa de seu alto custo e se casava de novo. A outra possível interpretação é a de que o édito se refere a viúvas e proíbe que elas se casem novamente. A última me parece ser a interpretação mais provável, uma vez que restrições sobre
viúvas se casarem de novo aparecem em vários códigos de leis da Mesopotâmia, tendo sido decretadas melhorias na situação delas só bem mais tarde, no conjunto de leis conhecido como Código de Hamurabi. [ 120 ]
O segundo édito, sobre os comentários de uma mulher dirigidos a um homem, é ainda mais difícil de ser interpretado. Se ele fizer referência a proposta sexual ou declaração caluniosa de uma mulher a um homem, a punição é relativamente leve em termos de padrões mesopotâmicos de justiça. O máximo que podemos dizer sobre isso é que parece um exemplo inicial do controle do comportamento feminino por autoridades seculares, embora devamos lembrar que os éditos de Urukagina não tinham peso de lei. A interpretação de que os éditos de Urukagina denotem uma deterioração acentuada e decisiva no status das mulheres parece não ser comprovada, sobretudo em razão das evidências adicionais de mulheres em posições de poder, que discutiremos a seguir.
Em outra de suas “reformas”, Urukagina decretou que o pagamento e a compensação em alimentos para três empregados funerários homens fossem reduzidos de modo drástico e que uma suma sacerdotisa fosse adicionada à lista de empregados funerários pagos. Isso não revela nada sobre as mudanças no status das mulheres, mas mostra a presença de mulheres em altos postos religiosos, fato corroborado por várias evidências.
Os registros econômicos do templo Bau oferecem uma imagem vívida dos diversos papéis e funções das mulheres desempenhados no início do terceiro milênio, pelo menos em Lagash. O templo da deusa Bau, embora sua área se estendesse por apenas 2,6
quilômetros quadrados, empregava de mil a 1.200 pessoas ao longo de um ano. Toda a administração desse templo e da equipe de
trabalho ficava nas mãos da rainha Shagshag, esposa de Urukagina, que também cuidava do templo dedicado aos filhos da deusa Bau, este nominalmente sob a administração dos filhos do casal real. Como administradora desses dois templos, a rainha exercia autoridade legal e econômica sobre seus domínios. Também atuava como suma sacerdotisa do templo. [ 121 ]
No primeiro ano do reinado de Urukagina, a equipe doméstica de trabalho da rainha consistia de 150 escravas trabalhando como fiandeiras e bordadeiras de lã, cervejeiras, moleiras e cozinheiras. A lista de pagamento menciona ainda uma cantora e diversos músicos. Outros trabalhadores eram homens livres, que recebiam suprimento semanal de alimentos e também espigas de milho e animais de arado. Cem pescadores forneciam peixe. O fazendeiro de porcos empregava seis escravas para moer os grãos para a alimentação dos porcos. Na cozinha, trabalhavam 15 cozinheiros e 27 escravas, que faziam trabalho servil. A cervejaria empregava 40
funcionários homens, que eram livres, e seis escravas. Cerca de 90
funcionários cuidavam dos animais, entre eles, cinco fazendeiros de gado, cujo chefe era irmão da rainha. Essa informação interessante das listas de pagamento nos conta por acaso que a rainha, assim como provavelmente seu marido, era plebeia de nascimento. [ 122 ]
O registro mostra que, no reinado do antecessor de Urukagina, cada uma das crianças reais tinha um conjunto de servos e era dona de propriedades independentes. Cada criança tinha uma ama de leite, uma babá, diversas criadas, um cozinheiro, um ferreiro, várias escravas moleiras, um jardineiro e diversos ajudantes de jardinagem. Essa extravagância se restringiu, de certa forma, sob o regime de Urukagina. Não há amas de leites na lista, talvez porque as crianças já estivessem grandes para isso, e também não há
babás. Cada criança tinha um ou dois servos pessoais, e um cabeleireiro atendia a todas. Todas as crianças possuíam ainda terras próprias, bem como escravos e artesãos necessários para a manutenção dessas terras. Apesar de suas afirmações em contrário, o rei Urukagina consolidou seu poder pessoal e familiar e também suas propriedades, e é possível observar isso pela comparação das listas de equipes de trabalho do templo de Bau referentes a cada ano do regime de Urukagina: Ano I – 434; Ano II, o ano em que se autoproclamou lugal – 699; Ano III – 678. Uma lista de escravas e seus filhos mantida à parte mostra um aumento drástico semelhante no Ano II: Ano I – 135; Ano II – 229; Ano III –
206; Ano IV – 285; Ano V – 188; Ano VI – 221. [ 123 ]
Urukagina foi derrotado de forma violenta por outro rei usurpador, Lugalzagesi, da cidade de Umma. Embora ele tenha expandido suas terras e se autonomeado soberano absoluto de toda a Suméria, não conseguiu consolidar suas conquistas e administrá-las como um estado unificado. Esse feito foi realizado pelo homem que o derrotou e acabou com a independência de Lagash, o rei Sargão da Acádia (cerca de 2350-2230 a.C.). No período de Urukagina, podemos então observar os primeiros estágios da formação de realeza e cidades-Estados, que precede a formação de Estados-nações. Percebemos que o militarismo e o emprego de mulheres escravas nos Estados-templos já estão bem estabelecidos. Também percebemos tensões e conflitos entre vários grupos de donos de propriedades: o rei e seus homens, donos de terras privadas e de escravos; os sacerdotes administradores dos Estados-templos e as comunidades independentes de pequenos proprietários de terras.
Nesses conflitos, usurpadores da realeza, que, por definição, eram homens militares, usaram suas famílias, principalmente as esposas,
para consolidar e garantir seu poder. Assim, mulheres dessa classe tinham posições de significativo poder econômico, legal e judicial e podiam, com relativa frequência, representar os maridos em todos os âmbitos. Ao mesmo tempo, mulheres de classes mais baixas desempenhavam diversos papéis econômicos como artesãs e trabalhadoras da indústria doméstica, enquanto escravas estrangeiras representavam grande parte da força de trabalho dos templos. Devemos também observar que, logo no primeiro esforço de um rei para estabelecer a lei e a ordem proclamando um édito, um dos aspectos da regulação diz respeito ao papel de gênero das mulheres: ou seja, o direito de se casar de novo e a maneira como falam com homens. Esse fato, embora inconclusivo de forma isolada, terá grande significado quando analisarmos mais tarde os diversos códigos de leis. Nesse aspecto, o “édito” de Urukagina está próximo ao início de um lento e inconstante processo de transição do status das mulheres e de definição de gênero que levou quase 2.500 anos. É esse processo que este livro busca documentar e interpretar.
O
S
A
, um soberano semita, fundou uma
dinastia que se estendeu por partes da Suméria, Assur (Assíria), Elam e o vale do Eufrates (cerca de 2371-2316 a.C.). Para governar esse domínio vasto e sem lei, Sargão instituiu cidades de guarnição e fez alianças. Também fortaleceu seu regime ao colocar gente de confiança para governar as cidades-Estados antes independentes, que agora faziam parte de seu domínio. Ele nomeou a filha Enheduanna suma sacerdotisa do templo do deus da Lua na cidade de Ur e do templo de An, o supremo deus do paraíso, em Uruk.
Uma vez que Enheduanna era também devota de longa data da
deusa suméria Inanna, sua nomeação simbolizava a fusão de Inanna com a deusa acádia Ishtar. Segundo parece, Enheduanna era extremamente talentosa e politicamente perspicaz. Sargão falava a língua acádia e a promoveu a idioma administrativo oficial, mas sua filha era uma ilustre poetisa (a primeira poetisa conhecida da história) e escrevia em língua suméria. Um acadêmico diz que ela “usava esses talentos para propagandear [...] a união de sumérios e acádios em um estado capaz de levar o regime mesopotâmico [...] às mais longas distâncias do Oriente Próximo Asiático”. [ 124 ]
A poesia e os hinos à deusa Inanna de autoria de Enheduanna perduraram além dela. Após a morte de Sargão, o novo soberano de Ur tirou Enheduanna de sua posição de suma sacerdotisa. Ela escreveu sobre essa injustiça em um longo hino, apelando à deusa Inanna para curar suas feridas e fazê-la retornar ao ofício.
Enheduanna é citada e comentada como poetisa com frequência em escritos sumérios posteriores. [ 125 ]
De forma semelhante, o neto de Sargão, Naram-Sin, o Grande, nomeou a filha Enmenanna suma sacerdotisa em Ur. Essa prática foi depois seguida por soberanos sumérios e acádios por 500 anos.
O registro escrito mostra que “13 sacerdotisas reais ocuparam a posição por uma média de 35 a 40 anos (por volta de 2280-1800
a.C.)”. [ 126 ]
Depois do colapso do Império Sargônico e da longa e complexa luta por dominância entre as cidades-Estados da Mesopotâmia, vários
soberanos
promoveram
casamentos
dinásticos
e
diplomáticos como forma de consolidar benefícios militares e evitar conflitos. Por exemplo, no período da terceira dinastia de Ur, os soberanos de Ur arranjavam casamentos entre suas filhas e os
filhos dos soberanos de Mari e outras cidades. Alguns poemas e canções de amor escritos por “damas do império da dinastia de Ur III” foram preservados. [ 127 ] A tradição de casamentos dinásticos continuou no Oriente Próximo e em outros lugares e épocas, sempre que os soberanos dinásticos precisavam legitimar ou fortalecer o regime sobre territórios conquistados ou vizinhos. Era uma maneira mais nobre e elaborada de “comércio de mulheres”
praticado muito antes em quase todas as sociedades, limitando as filhas de famílias governantes de classe alta a um papel especial e bastante ambicioso. De certo modo, elas eram apenas fantoches dos projetos diplomáticos e ambições imperialistas de suas famílias; em nada diferentes dos irmãos, que às vezes eram forçados a casamentos e não tinham mais poder de escolha do que as mulheres. Ainda assim, como qualquer estudo minucioso de casos específicos deve mostrar, essas princesas costumavam ser influentes, ativas politicamente e poderosas. [ 128 ] O papel delas como futuras esposas em casamentos diplomáticos exigia que recebessem a melhor educação disponível. É muito provável que essa tendência a educar princesas para que pudessem ser informantes e representantes diplomáticas dos interesses da família depois de casadas conte como evidência ocasional de oportunidades educacionais “iguais” para mulheres, mesmo diante da desvantagem educacional geral feminina ao longo do tempo histórico. O que deve ser lembrado é que esse pequeno grupo de filhas da classe dominante nunca representou todas as mulheres da época e da sociedade.
Diversos textos legais da terceira dinastia de Ur, conhecidos como o Código de Ur-Nammu, além do Código de Lipit-Ishtar das dinastias de Isin e Lara, perduraram para nos mostrar um pouco da
vida social e econômica da época. Durante esse período, a prática de nomear princesas como sumas sacerdotisas continuou. A nobre e muito característica estátua da sacerdotisa Enannatumma de Isin, que supostamente representa também a deusa Ningal, é prova do
prestígio e da honra sempre creditados às mulheres do sacerdócio. [
No período de 2000-1800 a.C., os contínuos conflitos e a fragmentação política marcam a instável luta por poder de várias cidades e cidades-Estados. Por volta de 1965 a.C., Shin-kashid de Isin conquistou Uruk e fundou uma dinastia, construindo um templo na cidade de Durum e lá instituindo sua filha Nin-shatapad como suma sacerdotisa. Quando o rei de Lara derrotou o pai dela e acabou com seu reinado, Nin-shatapad foi exilada. Ela escreveu uma carta eloquente a seu conquistador, apelando à generosidade dele para poupar a cidade de Durum e seu templo e restituí-la à função sacerdotal. Essa carta tornou-se um modelo do tipo e foi incluída no currículo da escola de escribas onde a própria havia se formado. [ 130 ] Esse incidente é importante não apenas para nos mostrar a iniciativa de uma mulher na área de relações públicas, mas também porque nos oferece evidências de que as mulheres desse período ainda eram formadas escribas.
Conforme traçamos o desenvolvimento do papel da esposa real e da filha real como “substitutas” do marido e do pai, podemos encontrar evidências em outro lugar e cultura, a cidade de Mari, que ficava localizada mais ao norte da Suméria, onde hoje é a fronteira Iraque-Síria. Uma compilação de documentos reais, datados de 1790 a 1745 a.C., descrevem uma sociedade que dava às mulheres da elite grande alcance em atividades econômicas e políticas. As mulheres, assim como os homens, possuíam e administravam
propriedades, podiam fazer contratos no próprio nome, abrir processos e atuar como testemunhas. Participavam ainda de transações comerciais e legais como adoções, vendas de propriedades, realização e recebimento de empréstimos. Algumas mulheres aparecem nas listas que mostram quem presenteava o rei; tais presentes eram um imposto ou um tributo de vassalo, o que indicava que a mulher tinha posição política e direitos. As mulheres eram também escribas, instrumentistas e cantoras. Realizavam funções importantes como sacerdotisas, adivinhas e profetisas.
Como o rei consultava com regularidade profetas e adivinhos antes de tomar qualquer decisão importante ou antes de ir à guerra, essas pessoas eram, na verdade, conselheiros do rei. O fato de os documentos de Mari não fazerem distinção entre o valor de profetas e profetisas demonstra o status relativamente igual das mulheres da elite na sociedade de Mari. [ 131 ] O assiriólogo Bernard Frank Batto explica a posição das mulheres em Mari em comparação com outras culturas da Mesopotâmia como um vestígio cultural de um estágio anterior de desenvolvimento:
Apenas recém-saídos do estágio tribal, esses soberanos amoritas mantiveram muitas das características da herança tribal em suas políticas econômicas emergentes. Ao contrário das cidades-Estados desenvolvidas, com posições e cadeia de comando mais demarcadas e institucionalizadas, os reis amoritas do norte parecem ter mantido um estilo “patriarcal” de governo. Toda a autoridade ficava nas mãos do rei, que supervisionava pessoalmente todas as operações,
ou pelo menos delegava pessoalmente tal autoridade caso fosse necessário. [
A sugestão de que o papel de “substitutas” das mulheres seja característico de um conceito mais inicial de regime real é intrigante
e corrobora minha análise de que o status e os papéis das mulheres se tornam mais limitados conforme o aparato do Estado se torna mais complexo.
Alguns dos documentos de Mari fornecem um retrato nítido das vidas e atividades dessas damas reais no papel de suplentes de seus parentes homens. A rainha, primeira esposa do rei, tinha poder independente no palácio, no templo, em oficinas e atuava como substituta do rei quando ele estava ausente por motivos de guerra ou missão diplomática. Por conta própria, ela administrava sua propriedade e supervisionava a equipe de trabalho feminina do palácio. As esposas secundárias do rei, em ordem de classificação, eram acomodadas em palácios distantes, que o rei parecia visitar a intervalos regulares, e onde elas realizavam tarefas administrativas semelhantes. Uma delas era Kunshimatum, a esposa secundária do rei Yasmah-Addu de Mari. Uma carta escrita por ela revela a extensão e os limites de seus poderes. Ela havia estabelecido e administrado a “casa” (palácio) do rei, e orava por ele com regularidade perante o deus Dagan. Porém, por algum motivo não explicado, era considerada pessoa indesejada e falsamente acusada de má administração. “A casa que estabeleci será entregue (a outra pessoa)?”. Kunshimatum apelou ao rei:
Então por que me alienaram completamente de sua afeição? O que eu tomei de sua casa? Instrua seus fiscais para que inspecionem sua casa [...]. Salve minha vida. Você sabe que (!) estas são (as palavras) que suplico perante Dagan por você: “Que tudo fique bem com Yasmah-Addu para que eu também possa prosperar sob sua proteção”. [ 133 ]
O poder da esposa, como o do vassalo homem, dependia da vontade e do capricho do rei. Como um vassalo feudal de uma época posterior, Kunshimatum entendia que somente com a proteção de seu senhor havia segurança para ela. Em seu caso, essa proteção não foi muito eficaz. Yasmah-Addu, ele próprio um usurpador assírio, foi derrotado por Zimri-Lim, que assim recuperou o trono dos antepassados. Nesse momento, Kunshimatum e todas as outras damas reais se tornaram prisioneiras de guerra para o conquistador. Mais tarde, em Israel, o vencedor adquiriu o harém do rei anterior como parte da legitimação de seu direito ao trono. [ 134 ]
O mesmo destino tiveram as muitas filhas de outro rei de Mari, que reinou antes de Zimri-Lim. Quando o pai foi deposto por um conquistador assírio, essas filhas criadas nobremente, que haviam sido formadas na arte do canto, foram entregues como escravas a uma autoridade secundária do novo governo. Não foram enviadas às fábricas têxteis, mas se tornaram escravas domésticas. [ 135 ]
A correspondência da rainha Shibtu com seu marido, o rei Zimri-Lim, tem especial importância. B. F. Batto comenta sobre ela: “O
papel de Shibtu é excepcional no alcance e na absoluta multiplicidade de atividades nas quais estava envolvida [...]. Sua influência era sentida em toda parte. Não surpreende que tantos a estimassem”. [ 136 ]
A rainha Shibtu atuava como suplente do marido durante suas ausências frequentes. Recebia relatórios dos administradores da cidade de Mari. O governante de Terqa, uma cidade vizinha, respondia à rainha sobre assuntos comerciais e executava suas ordens. Os governantes e reis subordinados a homenageavam em termos geralmente reservados apenas ao soberano. [ 137 ] Shibtu ofertava sacrifícios, supervisionava oráculos e profecias, e eventos
de grande importância, sobre os quais ela aconselhava o rei com regularidade. Também executava as ordens do rei. Em certa ocasião, o marido ordenou que ela selecionasse algumas prisioneiras que estava enviando para casa:
Entre elas há algumas sacerdotisas ugbabatum. Selecione as sacerdotisas ugbabatum e as envie (isto é, o resto) para a casa das tecelãs [...]. Escolha dentre as 30 tecelãs – ou quantas forem de escolha (e) atraentes, que não tenham defeitos (!) dos pés à cabeça – e as envie para Wara-ilisu. E Wara-ilisu deve dar a elas o véu de Subartu (?). Além disso, o documento do status delas deve ser alterado. Dê orientações sobre as rações, para que a aparência delas não piore. E, quando selecionar as tecelãs, deixe que Wara-ilisu as guarde (?)
[...]. [ 138 ]
Aqui, é óbvio, o rei instruiu a esposa a selecionar mulheres dentre as prisioneiras para seu harém. Sua preocupação quanto à beleza delas e as instruções de que recebessem alimentação adequada para manter a aparência são prova disso. Mas, em carta posterior, o rei revogou sua ordem. Ele escreveu à esposa: “Haverá mais prisioneiras de guerra a meu dispor [...]. Eu mesmo selecionarei dentre estas quais pegarei, as garotas para o véu, e as enviarei a você”. [ 139 ]
A cooperação da esposa nessa questão é dada como certa, e supõe-se que o uso sexual das prisioneiras por seu marido, que servia não apenas para satisfazê-lo sexualmente, mas também para aumentar seus domínios e status, era algo rotineiro. Ainda assim, como vimos pelo caso de Kunshimatum, qualquer nova conexão sexual do marido era uma possibilidade de ameaça à posição da primeira esposa, mesmo que ela estivesse legalmente em uma situação mais segura do que as esposas secundárias.
O rei Zimri-Lim arranjava casamentos políticos para as filhas.
Quando ele casou sua filha Kirum com Khaya-Sumu, soberano de Ilansura, também a nomeou prefeita da cidade de Khaya-Sumu.
Kirum, que parece ter sido uma mulher determinada, exercia sua autoridade como prefeita. Também se correspondia com o pai a respeito de assuntos políticos e o aconselhava sem limitações. Suas atividades desagradavam o marido, que se tornou cada vez mais cruel com ela. O conflito conjugal agravou-se pelo fato de que Khaya-Sumu também havia se casado com uma irmã ou meia-irmã de Kirum, uma mulher chamada Shibatum. O relacionamento entre as duas irmãs, qual delas foi a primeira esposa e qual era a secundária, não está claro nos documentos disponíveis. [ 140 ] O
casamento de duas irmãs com o mesmo homem ocorreu em inúmeros casos na sociedade mesopotâmica. Nesse caso específico, terminou mal para Kirum. O marido tinha clara preferência por Shibatum, e o casamento deu tão errado, que Kirum pediu ao pai permissão para voltar para casa, o que seria equivalente ao divórcio. Em uma carta ao pai, descreveu em detalhes uma discussão dentre uma longa lista de brigas domésticas:
(K)Haya-Sumu levantou-se e (disse) diretamente a mim. “Você comanda a prefeitura aqui. (Mas) como eu (por certo) vou matá-la, deixe-o vir – sua estrela
– e levá-la de volta”. [ 141 ]
“Sua estrela” é como ela se referia ao pai. A carta continua: Ela levantou-se, Shimatum, diante de mim (dizendo) o que segue: “Quanto a mim, deixe minha estrela fazer o que ele quiser comigo, (mas) eu farei o que eu
quiser!”. Se ele (o rei) não me levar de volta, eu morrerei; não vou viver. [ 142 ]
A despeito desse apelo desesperado de Kirum, seu pai aparentemente não fez nada. Na carta seguinte, Kirum ameaçou tomar medidas mais drásticas: “Se o meu senhor não me levar de volta, irei até Mari (e lá) pularei (cairei) do telhado”. Isso surtiu o efeito desejado. O pai, mais uma vez ausente a trabalho, instruiu a esposa a providenciar a volta de Kirum para Mari. Não existe registro formal de divórcio, mas o efeito foi o mesmo. [ 143 ]
O rei Zimri-Lim tinha várias filhas. Oito delas foram entregues em casamento a vassalos do pai com o intuito de que isso os aproximasse do rei. Essas mulheres costumavam atuar como mediadoras entre o pai e o marido. Assim, uma das filhas, Tizpatum, apelou ao pai para que enviasse cem tropas para ajudar o marido em um conflito local. “Do contrário”, disse ela,
o inimigo vai tomar a cidade. Agora, justamente por minha causa, as pessoas estão preocupadas com ele, dizendo: “Como ele pode ser casado com a filha de Zimri-Lim e ser leal a Zimri-Lim!”. Deixe meu pai e senhor saber disso. [ 144 ]
É nítido que o objetivo desses casamentos diplomáticos era garantir alianças entre os soberanos locais e suas obrigações mútuas implícitas. É impossível não se deixar afetar pelo tom competente e assertivo da carta da filha.
Outra das filhas em um casamento diplomático não se saiu tão bem. Suas cartas são longos e detalhados protestos sobre como o marido a tratava mal. Ela também apelou ao pai para que a levasse de volta para casa. Em seu caso, o rei aconselhou: “Vá e cuide de sua casa. Mas, se isso não for possível, cubra a cabeça e venha até
mim”. Esse conselho não surtiu o efeito desejado. A filha fugiu para os domínios de um soberano vizinho, onde o marido se contentou em deixá-la como praticamente prisioneira. O desfecho de seus problemas conjugais é desconhecido. [ 145 ]
Duas das filhas do rei eram sacerdotisas naditum, uma delas dedicada ao deus Samas e a sua consorte Aya em Sippur. Como todas as sacerdotisas, ela havia levado um dote para o templo e continuou sendo sustentada pela família. Algumas naditum eram bastante ativas em empreendimentos comerciais, comprando e vendendo propriedades e escravos e fornecendo empréstimos a taxas de juros comuns de agiotas. A maioria delas mantinha escravos para fazer o trabalho servil. No caso de Erishti-Aya, ela morava em um claustro e não estava satisfeita com isso. Realizava um trabalho importante, sempre orando pelo rei. Ela o informou desse fato para sustentar sua reivindicação por rações adequadas.
As cartas têm um tom de lamento:
Agora a(s) filha(s) de sua casa [...] estão recebendo suas rações de cereais, roupas e cerveja boa. Ainda que apenas eu seja a mulher que ora por você, não recebo suprimentos. [ 146 ]
Esse tema é recorrente em várias de suas cartas. Em uma delas, escrita para a mãe, ela diz:
Eu sou filha do rei! Você é esposa do rei! Mesmo desconsiderando as tábuas com as quais seu marido e você me fizeram entrar no claustro – eles tratam bem soldados capturados como presos de guerra! Vocês, então, me tratem bem! [ 147 ]
Não fica claro se o motivo das reclamações era porque os pais a negligenciavam ou se a negligência era da parte das autoridades do templo. Uma de suas declarações parece indicar a segunda opção:
“Minhas rações de cereais e roupas, com as quais (meu) pai me mantém viva, eles (uma vez) me deram, então faça com que me deem (as rações agora) para que eu não morra de fome”. [ 148 ] B. F.
Batto observa que protestos semelhantes aparecem em cartas de várias naditum em Sippur. Isso pode refletir, ele acha, “uma padronização que de certa forma prejudica nossa noção de urgência”. [ 149 ] Também pode representar corrupção ou negligência da parte das autoridades do templo.
Erishti-Aya pode ter sido vitimada pela família ou por seus superiores no templo, mas sua própria postura em relação a quem trabalhava para ela não era nada generosa. Ela escreveu ao pai:
“Ano passado você me mandou duas escravas e uma (dessas) escravas precisou morrer! Agora você me trouxe (mais) duas escravas (e destas) uma escrava precisou morrer!”. A própria princesa, segundo seus protestos, ameaçada de “morrer de fome”, sentia apenas aborrecimento e irritação pela morte de duas escravas. [ 150 ]
Estas são algumas das informações que temos sobre as filhas do rei Zimri-Lim. Suas cartas nos oferecem um olhar íntimo da vida familiar de cerca de 2.500 anos atrás e mostram um grupo de mulheres articuladas e determinadas envolvidas em assuntos públicos e privados, defendendo seus direitos de maneira autoconfiante. Eram um grupo excepcional de mulheres? Sabemos que Zimri-Lim delegava mais autoridade e poder à mulher em sua família do que era o costume. Por exemplo: uma mulher chamada Addu-duri, que pode ter sido sua mãe ou irmã mais velha, atuava
como sua suplente supervisionando oferendas religiosas e oráculos em Mari; ela comprava suprimentos e, em outros momentos, tomava decisões legais. [ 151 ] Não podemos dizer com certeza se a outras princesas era dada autoridade semelhante. Por outro lado, pode-se concluir, com base na reação violenta e bem-sucedida do marido de Kirum, que a concessão de autoridade independente à esposa pelo pai dela era uma prática incomum e inaceitável.
As ricas imagens que restaram da civilização mesopotâmica corroboram a suposição de que as mulheres da elite eram respeitadas e conferiam dignidade a uma cultura que conseguia enxergar sabedoria e autoridade na figura feminina (ver Ilustrações 5, 14 e 15 na Seção Ilustrações).
A
de fragmentos de evidências relacionadas a
mulheres mesopotâmicas em diferentes culturas ao longo de um período de 1.400 anos, o que aprendemos? Vimos evidências extensas de sociedades nas quais a participação ativa de mulheres na vida econômica, religiosa e política era dada como certa.
Igualmente dada como certa era a dependência delas e a obrigação em relação aos parentes homens e/ou maridos.
Para a elite dominante, o interesse próprio como usurpadores da realeza exigia que o estabelecimento de poder se tornasse o que um analista, de maneira sagaz, chamou de “burocracia patrimonial”.
[ 152 ] A garantia do poder deles dependia da distribuição de familiares em importantes posições subordinadas de poder. Tais familiares, nesse período inicial, costumavam ser mulheres –
esposas, concubinas ou filhas – que, digamos assim, tornaram-se as primeiras senhoras feudais de seus maridos/pais/reis. Assim, surgiu o papel da “esposa como suplente”, no qual encontraremos
mulheres a partir desse período. Observamos a extensão e os limites do poder delas representado pela rainha Shibtu, que executava as ordens do marido ao governar o reino e selecionar mulheres dentre as prisioneiras para o harém dele. Sua imagem pode ser uma metáfora perspicaz para o que significa, o que significava na época e o que significou por quase 3 mil anos para uma mulher pertencer à classe alta. O papel da rainha Shibtu de
“esposa como suplente” é a posição mais alta à qual essas mulheres podem aspirar. O poder delas deriva inteiramente do homem do qual dependem. A influência e o verdadeiro papel em moldar os eventos são reais, assim como o poder sobre homens e mulheres de classes mais baixas que elas possuem ou controlam.
Mas, em relação à sexualidade, são completamente subordinadas aos homens. Aliás, como vimos nos casos de diversas esposas reais, o poder delas na vida econômica e política depende do quanto é satisfatória a servidão sexual a seus homens. Se não os agradarem mais, como no caso de Kirum ou Kunshimatum, perdem o poder por capricho de seus senhores.
Assim, as mulheres acabaram se percebendo, de forma bem realista, dependentes dos homens. Isso se manifesta com perfeição na oração de Kunshimatum. Assim como o vassalo feudal de uma época posterior, ela entendeu que sua única segurança era a proteção de seu senhor. É impressionante e assustador contemplar que ela orava não pela própria proteção, como o interesse próprio dita, mas por seu senhor, “para que eu também possa prosperar sob sua proteção”. O que vemos aqui é o surgimento de um conjunto de relações de poder nas quais os homens adquiriram poder sobre outros homens e sobre todas as mulheres. Assim, os homens da elite se viam como aqueles que podiam adquirir poder sobre outros,
riqueza em bens e em servidão sexual, ou seja, a aquisição de escravas e concubinas para um harém. Mulheres, mesmo as mais seguras, bem-nascidas e autoconfiantes, viam-se como pessoas dependentes da proteção de um homem. Este é o mundo feminino do contrato social: mulheres cuja autonomia lhes é negada dependem de proteção e se empenham para conseguir o melhor acordo possível para elas mesmas e seus filhos.
Se nos lembrarmos de que estamos aqui descrevendo um período histórico no qual nem os códigos de leis formais haviam sido escritos ainda, podemos começar a perceber quanto as definições patriarcais de gênero estão enraizadas na civilização ocidental. A matriz das relações patriarcais entre os sexos já tinha um lugar fixo antes dos desenvolvimentos econômico e político institucionalizarem por completo o Estado e muito antes de a ideologia do patriarcado ser desenvolvida. Nesse estágio inicial, a transição de uma classe para outra ainda era relativamente fluida, e a ascensão social era uma possibilidade distinta, até mesmo para as classes mais baixas.
De forma gradual, fazer parte de uma classe específica passou a ser algo hereditário. A transição definitiva para a nova organização social era a institucionalização da escravidão.
A fim de entender mais sobre a conexão entre estrutura familiar, o desenvolvimento da escravidão como sistema de classes e a institucionalização do poder do Estado, devemos observar com mais atenção esses aspectos do desenvolvimento histórico e tentar reconstruir a tessitura de vidas femininas que não faziam parte da elite.
QUATRO
A MULHER ESCRAVA
F
da escravidão são escassas,
especulativas e difíceis de avaliar. A escravidão raramente ocorre, se tanto, em sociedades de caçadores-coletores, mas aparece em regiões e épocas muito distintas com o advento da pastorícia, e depois com a agricultura, a urbanização e a formação do Estado. A maioria das autoridades concluiu que a escravidão deriva da guerra e da conquista. As fontes de escravidão que costumam ser citadas são: captura em guerra; punição por algum crime; venda por algum
familiar; venda de si mesmo por débito; e escravidão por dívida. [ 153
] A escravidão é a primeira forma institucionalizada de dominância
hierárquica na história humana; relaciona-se ao estabelecimento de uma economia de mercado, de hierarquias e do Estado. Por mais opressiva e brutal que, sem dúvida nenhuma, tenha sido para suas vítimas, a escravidão representou um avanço essencial no processo de organização econômica, avanço no qual se baseou o desenvolvimento da antiga civilização. Assim, podemos falar justificadamente na “invenção da escravidão” como um divisor de águas crucial para a humanidade.
A escravidão só podia ocorrer onde existissem determinadas precondições: era preciso haver excedentes de alimentos; meios de reprimir prisioneiros resistentes; distinção (visual e conceitual) entre escravos e escravizadores. [ 154 ] Em muitas sociedades nas quais existia, de alguma maneira, a prática de possuir escravos, não havia um status fixo de escravo, apenas vários graus de subordinação e trabalho forçado. Para que o status de escravo fosse institucionalizado, as pessoas precisavam ter como certa que a possibilidade dessa dominância teria mesmo resultado positivo. A
“invenção da escravidão” baseou-se na ideia de que um grupo de pessoas pode ser classificado como um grupo externo, marcado a ferro como escravizável, forçado ao trabalho e à subordinação – e de que esse estigma de ser escravizável, combinado com a realidade de seu status, faria o grupo aceitar isso como fato. [ 155 ]
Além disso, era necessário que essa escravização não apenas durasse a vida inteira do escravo, mas que também o status de escravo pudesse ser fixado de modo permanente ao grupo dessas pessoas, antes livres, e a seus descendentes.
A invenção crucial, para além de brutalizar outro ser humano e forçá-lo a trabalhar contra sua vontade, foi a possibilidade de classificar o grupo a ser dominado como completamente diferente do grupo que exerce dominância. É evidente que tal diferença fica mais óbvia quando o grupo escravizado são membros de uma tribo estrangeira, literalmente “outros”. Ainda assim, para estender o conceito e transformar os escravizados em escravos, de alguma forma diferentes de seres humanos, os homens já deviam saber que essa classificação funcionaria de fato. Sabemos que constructos mentais costumam vir de algum modelo da realidade e consistem de um novo ordenamento de experiência passada. Essa experiência,
disponível aos homens antes da invenção da escravidão, era a subordinação de mulheres do próprio grupo.
A opressão de mulheres precede a escravidão e a torna possível.
Vimos em capítulos anteriores como homens e mulheres construíram as relações sociais que deram origem a dominância e hierarquias. Vimos como a confluência de inúmeros fatores resultou na assimetria sexual e na divisão de trabalho com pesos desiguais para homens e mulheres. A partir disso, o parentesco estruturou as relações sociais de tal forma, que mulheres eram comercializadas para casamento e homens tinham certos direitos sobre as mulheres que estas não tinham sobre eles. A sexualidade e o potencial reprodutivo das mulheres se tornaram mercadorias a ser comercializadas ou adquiridas para servir a famílias; então, as mulheres eram consideradas um grupo com menos autonomia do que os homens. Em algumas sociedades, como na China, as mulheres continuaram sendo estranhas marginalizadas em relação ao grupo de seus parentes. Enquanto os homens “faziam parte” de uma família ou linhagem, as mulheres “pertenciam a” homens que adquirissem direitos sobre elas. [ 156 ] Na maioria das sociedades, as
mulheres são mais vulneráveis à marginalidade do que os homens.
Uma vez privadas da proteção de um parente homem por razão de morte, separação ou por não ser mais desejada como parceira sexual, a mulher se torna marginalizada. Logo no início da formação do Estado e do estabelecimento de hierarquias e classes, os homens devem ter observado essa vulnerabilidade maior nas mulheres e aprenderam assim que podiam usar diferenças para separar e dividir um grupo de pessoas de outro. Essas diferenças podem ser “naturais” e biológicas, como sexo e idade, ou podem ser criadas pelo homem, como aprisionamento e marcação a ferro.
A “invenção da escravidão” envolve o desenvolvimento de técnicas de escravização permanente e do conceito, tanto para o dominante quanto para o dominado, de que a impotência permanente de um lado e o poder total do outro são condições aceitáveis de interação social. Como apontou Orlando Patterson em seu estudo completo da sociologia da escravidão, as técnicas de escravização tinham três aspectos característicos: (1) a escravidão começou como um substituto para mortes em geral violentas, sendo, “de modo peculiar, uma permuta condicional”; (2) o escravo passava por “alienação natal”; ou seja, ele ou ela era “isolado de todas as reivindicações de nascimento” e da participação legítima de direito em uma ordem social; (3) o “escravo era desonrado de forma generalizada”. [ 157 ] Evidências históricas sugerem que esse processo de escravização foi desenvolvido e aperfeiçoado a princípio com mulheres prisioneiras de guerra; que foi reforçado por já conhecidas práticas de comércio de mulheres para casamento e concubinato. Durante um longo período, talvez séculos, enquanto homens inimigos eram mortos pelos captores, gravemente mutilados ou levados para áreas distantes e isoladas, mulheres e crianças tornavam-se prisioneiras e se incorporavam a casas e à sociedade dos captores. É difícil saber o que inicialmente levou os homens à “permuta condicional da morte” para mulheres e crianças.
É mais provável que a maior vulnerabilidade física e debilidade fizessem-nas apresentar menos ameaça se fossem aprisionadas do que os guerreiros inimigos do sexo masculino. A “alienação natal” foi obtida com rapidez ao se transportá-las para longe dos povoados de origem, que costumavam estar fisicamente destruídos. Como seus parentes homens haviam sido mortos, essas prisioneiras não tinham esperança de resgate ou fuga. O isolamento e o desespero delas
aumentavam a sensação de poder de seus captores. O processo de desonra podia, no caso das mulheres, ser combinado com o ato derradeiro da dominância masculina: o estupro de prisioneiras. Se uma mulher fosse capturada com os filhos, se sujeitaria a quaisquer condições impostas pelos captores para garantir a sobrevivência deles. Se não tivesse filhos, o estupro ou uso sexual logo a faria engravidar, e a experiência mostraria aos captores que as mulheres suportariam e se adaptariam à escravidão na esperança de salvar os filhos e em algum momento melhorar sua sina.
A maioria dos historiadores que abordam o tema escravidão observou o fato de que a maior parte das primeiras pessoas escravizadas eram mulheres, mas não deram muita importância a isso. O item “Escravidão” da Encyclopaedia Britannica afirma: A guerra foi a primeira fonte de escravos do Antigo Oriente Próximo. [...]
Originalmente, parece que os prisioneiros eram executados; depois as
mulheres, e então os homens foram poupados para servir a seus captores. [ 158
Outro historiador observa:
Pode ser significativo que escravos homens apareçam não apenas mais tarde, como também em menor quantidade do que escravas mulheres. [...] É provável que os meios para a detenção e o emprego eficaz de escravos homens ainda não houvessem sido providenciados, então eles costumavam ser mortos. [ 159 ]
Como o assiriólogo I. M. Diakonoff aponta, manter prisioneiros de guerra homens era perigoso:
Forçar um destacamento de escravos prisioneiros – isto é, ex-guerreiros livres –
a trabalhar em um campo com enxadas de cobre exigiria aproximadamente o dobro de soldados armados para vigiá-los, porque, em um conflito armado, uma enxada de cobre não era tão diferente de um machadinho de cobre, que era a arma comum dos guerreiros daquela época. [...] Portanto, todos os prisioneiros de guerra homens eram mortos no ato, e apenas escravas mulheres eram usadas, em qualquer quantidade, na economia do Estado. [ 160 ]
Mesmo onde existia a necessidade econômica de uma grande força de trabalho escravo, não havia força de trabalho masculina suficiente disponível entre os captores para vigiar os prisioneiros dia e noite, garantindo assim a inofensividade deles. Povos diferentes precisaram de tempos diferentes para perceber que seres humanos podiam ser escravizados e controlados por outros meios que não a força bruta.
Orlando Patterson descreveu alguns dos meios pelos quais pessoas livres eram transformadas em escravos:
Escravos eram sempre pessoas que haviam sido desonradas de forma generalizada. [...] O escravo não podia ter honra por causa da origem de seu status, da indignidade e da totalidade de sua dívida, da ausência de qualquer existência social independente, mas, acima de tudo, porque ele não tinha poder, a não ser por intermédio do outro. [ 161 ]
Um aspecto desse processo de “desonra” é o corte de laços familiares:
A recusa formal de reconhecer as relações sociais do escravo teve profundas implicações emocionais e sociais. Em todas as sociedades escravocratas, casais de escravos podiam ser e eram separados à força, e as “esposas”
consensuais dos escravos eram obrigadas a ceder aos apelos sexuais de seus senhores; escravos não tinham custódia ou direitos sobre os filhos, e os filhos não herdavam direitos nem tinham nenhum dever para com os pais. [ 162 ]
Com foco tipicamente androcêntrico, Patterson inclui escravas mulheres no genérico “ele”, ignorando a prioridade histórica da escravização de mulheres e, portanto, deixando escapar a diferença significativa implícita na forma como a escravidão é vivenciada por homens e mulheres.
O impacto do estupro sobre o grupo conquistado era duplo: desonrava as mulheres e, por consequência, representava uma castração simbólica dos homens. Homens de sociedades patriarcais que não podem proteger a pureza sexual de suas esposas, irmãs e filhas sentem-se impotentes e desonrados. O costume de estuprar as mulheres de um grupo conquistado permaneceu como prática de guerra e conquista do segundo milênio a.C. até o presente. Trata-se de uma prática social que, assim como a tortura de prisioneiros, resiste ao “progresso”, a reformas humanitárias e a considerações éticas e morais mais sofisticadas. Sugiro que seja esse o caso, porque é uma prática incorporada e essencial à estrutura das instituições patriarcais, e delas inseparável. É no início do sistema, antes da formação de classes, que podemos vê-la em sua mais pura essência.
O próprio conceito de honra, para os homens, inclui autonomia, o poder de dispor de si e decidir por si mesmo, e o direito de que essa autonomia seja reconhecida por outros. Mas mulheres, sob o controle do patriarcado, não dispõem de si nem decidem por si mesmas. Seus corpos e serviços sexuais estão à disposição de seu grupo de parentes, maridos, pais. As mulheres não têm custódia
nem poder sobre seus filhos. Mulheres não têm “honra”. O conceito de que a honra de uma mulher está em sua virgindade e em sua fidelidade sexual ao marido ainda não havia sido plenamente desenvolvido no segundo milênio a.C. Defendo que a escravização sexual de mulheres prisioneiras foi, na realidade, um passo no desenvolvimento e na elaboração das instituições patriarcais, como o casamento patriarcal e sua contínua ideologia de colocar a “honra”
feminina na castidade. A invenção cultural da escravidão baseia-se tanto na elaboração de símbolos de subordinação das mulheres quanto na conquista real de mulheres. Subjugando mulheres do próprio grupo, e depois mulheres prisioneiras, os homens aprenderam o poder simbólico do controle sexual sobre os homens e elaboraram a linguagem simbólica na qual expressar dominância e criar uma classe de pessoas escravizadas do âmbito psicológico.
Com a experiência da escravização de mulheres e crianças, os homens entenderam que todos os seres humanos podem tolerar a escravidão, e desenvolveram técnicas e formas de escravização que lhes permitiriam transformar essa dominância absoluta em instituição social.
Existem sólidas evidências históricas da preponderância da prática de matar ou mutilar prisioneiros homens e da escravização e do estupro contra grande escala de mulheres prisioneiras. As primeiras referências ao tratamento de inimigos sobreviventes na Mesopotâmia datam de 2500 a.C. Na Estela dos Abutres, Eannatum, soberano de Lagash, registrou sua vitória sobre a cidade de Umma e descreveu como os vitoriosos empilharam milhares de corpos de inimigos em grandes amontoados. Mais tarde, o segundo rei da dinastia sargônica, Rimush, descreveu a conquista de diversas cidades da Babilônia e a morte de milhares de homens em
cada uma delas, bem como a tomada de milhares de prisioneiros.
Uma inscrição do rei Shu-Sin da terceira dinastia de Ur (cerca de 2043-2034 a.C.) descreve como ele instalou os “escravos” inimigos, uma presa de guerra da cidade derrotada de Simanum, em uma distante cidade fronteiriça. Essa presa de guerra aparentemente consistia de homens civis capturados e guerreiros inimigos, que depois eram libertados. Em diversos textos babilônicos, há outras referências à “presa de guerra” tomada e ofertada a vários templos.
A expressão “presa de guerra” aplicava-se a produtos, animais e pessoas. Guerreiros inimigos eram amarrados logo após a captura ou presos com madeira, um tipo de coleira ou parelha. [ 163 ] Em um estudo de todas as fontes disponíveis sobre prisioneiros da Babilônia, I. J. Gelb afirma:
Pode ser dado como certo que, enquanto prisioneiros de guerra permaneciam escravos à disposição da coroa, eles trabalhavam até a morte sob as condições mais desumanas, morriam de doença ou fugiam sempre que possível. [ 164 ]
Existem algumas referências nos textos a prisioneiros de guerra que foram cegados e obrigados a trabalhar em pomares. Um desses textos é pré-sargônico e trata de 12 prisioneiros homens de uma cidade em Elam que foram cegados. O outro texto, registro do templo da deusa Bau em Lagash citados antes, também menciona
“homens cegos” que trabalhavam em pomares. Nesse caso, assiriólogos discordam quanto ao significado do termo igi-du-nu.
Muitos sugerem que significa “incapaz”, portanto, uma metáfora para “cego”, ou que pode se referir a homens cegos de nascença que foram empregados assim. I. J. Gelb tende a vê-los como prisioneiros que foram cegados e aponta evidências adicionais do
período neoassírio de que prisioneiros de guerra homens eram cegados. [ 165 ] A retirada dos olhos de 14.400 prisioneiros capturados pelos assírios está registrada em uma inscrição de Salmanaser (cerca de 1250-1200 a.C.). [ 166 ]
O Antigo Testamento menciona inúmeros casos de cegueira forçada a prisioneiros de guerra: Sansão (Juízes 17:21), Zedequias (2 Reis 25:7) e a história dos homens de Jabesh (2 Samuel 11:2).
Heródoto escreve no Livro IV, 2, sobre a cegueira de prisioneiros de guerra praticada pelo povo cita. [ 167 ] Também na China, onde a escravidão se desenvolveu sobretudo fora do sistema penal, criminosos eram punidos com mutilação. A mutilação costumava consistir em tatuagem facial, amputação de nariz e pés, e castração.
O tipo de mutilação dependia da gravidade do crime. Podia ser aplicada ao criminoso ou a membros de sua família. O Código de Leis de Han afirma que “as esposas e os filhos de criminosos são confiscados como escravos e escravas e tatuados no rosto”.
Pessoas assim mutiladas formavam uma classe à parte e eram incumbidas de tarefas modestas, vivendo em um “estado de escravidão”. [ 168 ] A castração como forma de punição por crimes e, depois, como modo de adequar escravos para o trabalho em haréns era muito comum na Antiga China e na Mesopotâmia. A prática resultou no desenvolvimento do eunuquismo político na China, na Pérsia, na Roma Antiga, em Bizâncio, no Egito, na Síria e na África.
A prática é de interesse para esta discussão à medida que ilustra a necessidade de marcas visíveis e marginalização de pessoas a fim de designá-las como escravas permanentes, e também por mostrar o uso de controle sexual a fim de reforçar e perpetuar a escravização de uma pessoa. [ 169 ]
Dois textos administrativos mesopotâmicos, escritos com cinco meses de diferença e datados do reinado de Bur-Sin (terceira dinastia de Ur), oferecem-nos informações sobre 197 mulheres e crianças prisioneiras. No primeiro, são fornecidas rações para 121
mulheres (relata-se que 46 morreram) e 28 crianças, das quais se relata que apenas 5 estão vivas. Das 121 mulheres vivas, indica-se que 23 estão doentes. No segundo texto, são listadas como sobreviventes 49 mulheres e 10 crianças, que recebem rações de farinha e cerveja. Das 24 mulheres doentes mencionadas na primeira lista, apenas 5 estão na segunda lista, o que sugere a possibilidade de que apenas essas 5 sobreviveram à doença. Uma vez que as rações de alimentos fornecidas aos prisioneiros eram do mesmo padrão que as dos servos, as altas taxas de mortalidade e doença de prisioneiros indicam condições muito mais severas durante o transporte do campo de batalha até o local do aprisionamento ou um período de quase inanição por causa de problemas de distribuição e divisão de rações.
Outro desses textos descreve a presa de guerra ofertada ao templo em Umma como 113 mulheres e 59 crianças. I. J. Gelb também relata que “mulheres prisioneiras foram utilizadas na construção do palácio de Bur-Sin. Esse tipo de trabalho pesado não costumava ser realizado por mulheres locais”. [ 170 ]
Nas listas de ração do templo de Bau em Lagash, datadas de cerca de 2350 a.C., todos os trabalhadores do templo estão listados de acordo com seu status e trabalho realizado. Há uma lista à parte de “mulheres escravas e seus filhos”. A maioria delas preparava e fiava lã, algumas moíam grãos; outras trabalhavam na cozinha e na cervejaria ou cuidavam de animais domésticos. [ 171 ] Como pertenciam ao lar da rainha, esse grupo em particular não era de
escravas do harém nem de servas sexuais. Nesse período inicial, não existem registros da existência de haréns de modo geral, e, no caso específico do templo de Bau, não há disponibilidade de registros compatíveis do lar do rei. As escravas do templo de Bau não eram membros de famílias cujos chefes eram homens, uma vez que tais famílias eram relacionadas em uma lista de ração à parte.
Se essas mulheres fossem usadas para fins sexuais, seria esperado um aumento na quantidade de filhos por mulher com o passar dos anos, mas não parece ter sido o caso. A proporção relativamente equilibrada de mães e filhos – o dobro de mães – sugere que essas mulheres tenham sido escravizadas com seus filhos e eram usadas apenas como trabalhadoras. [ 172 ]
Cerca de 500 anos depois, as cartas do rei Zimri-Lim de Mari, mencionadas antes, ilustram a tomada de prisioneiras de guerra como “presa” e a incorporação destas ao lar do rei como trabalhadoras têxteis. Mas, naquele caso, a seleção das mulheres mais bonitas para trabalho especial parece indicar a existência de um harém, ou pelo menos a prática de usar essas mulheres como concubinas para ele mesmo e talvez para seus servos. [ 173 ]
Datados do mesmo período que os registros do templo de Bau, aproximadamente, os registros do templo de Samas em Sippar mostram uma quantidade relativamente pequena de escravos em relação à população total. Dos 18 mil nomes listados, 300 são de escravos, dois terços dos quais sendo de mulheres. Essa predominância de escravas em relação a escravos parece ter sido comum na realidade da Antiga Babilônia. Reflete também o uso predominante de escravas em casas privadas. [ 174 ]
A Ilíada, poema escrito no oitavo século a.C., reflete uma situação social existente na Grécia em cerca de 1200 a.C. [ 175 ] No Livro I da
Ilíada, a prática de escravizar mulheres capturadas e distribuí-las aos guerreiros como presa de guerra é mencionada casualmente inúmeras vezes. A concubina do rei Agamenon, Criseida, uma prisioneira de guerra de origem nobre, é reivindicada por seu pai, um sacerdote. Temendo a ira dos deuses, os guerreiros argonautas pressionam o rei para que devolva a moça. Agamenon concorda com relutância, mas exige outra presa em troca de Criseida. Ele é informado de que isso seria impossível, visto que a presa de guerra já havia sido distribuída. A presa de guerra consistia de mulheres capturadas, e a prática é tão comum, que Homero não precisa explicá-la. Agamenon, então, insiste em tomar a concubina de Aquiles, com estas palavras:
[...] Mas tomarei Briseida, de belo rosto, sua presa, eu mesmo indo até seu refúgio, e você verá quanto eu sou melhor do que você, e outro homem pode recuar de se comparar a mim e competir comigo. [ 176 ]
Aqui Agamenon afirma com clareza exemplar o significado da escravização de mulheres: ganhar status e honra entre os homens.
Após Agamenon levar a cabo sua ameaça e tomar Briseida à força, o que faz Aquiles se isolar em sua tenda e se retirar da batalha, o rei não a toca. Na verdade, ele não a queria; desejava apenas ganhar a disputa com Aquiles – um belo exemplo de reificação de mulheres.
Muito tempo depois, quando, em grande parte por causa da retirada de Aquiles e do descontentamento dos deuses, os gregos encaram a derrota, Agamenom admite sua culpa na disputa com Aquiles. Na frente de seus comandantes e homens reunidos, o rei propõe devolver Briseida e faz um grande juramento:
[...] que eu nunca me deitei com ela como é natural de seres humanos, entre homens e mulheres. [ 177 ]
Tentando induzir Aquiles a se juntar à batalha, ele oferece presentes em ouro, cavalos e promessas:
Eu darei a ele sete mulheres de Lesbos, cujo trabalho manual é irrepreensível.
[...] e cuja beleza supera a de todas as raças de mulheres. [ 178 ]
Ele também oferece uma de suas três filhas, à escolha de Aquiles, em casamento. Após a derrota de Troia, Agamenon diz:
Deixe-o escolher 20 mulheres troianas, que são as mais atraentes de todas depois de Helena de Argos. [ 179 ]
Nada disso impressiona Aquiles, que recusa todas as oferendas.
Quando Aquiles vai dormir, o poeta nos diz:
[...] e uma mulher se deita ao lado dele, alguém que ele havia tirado de Lesbos, filha de Forbas, Diomeda, de face rosada. No lado oposto, Pátroclo se deitava com outra garota, Ífis, de bela cintura, que o brilhante Aquiles lhe havia dado quando tomou Esquiro, refúgio de Enieu. [ 180 ]
Não há menção na Ilíada de guerreiros escravizados.
O destino que aguarda os derrotados também é descrito por uma das mulheres troianas como:
[...] as dores que atingem os homens quando a cidade deles é tomada: matam os homens, e o fogo transforma a cidade em cinzas, e estranhos levam as
crianças e as mulheres de cintura fina embora. [...] [ 181 ]
E Heitor de Troia, falando com a esposa Andrômaca na véspera da batalha, confessa não estar tão preocupado com a dor da perda de determinados colegas guerreiros nem com a de seu pai e sua mãe:
[...] quanto me preocupa pensar em você em lágrimas, quando algum aqueu de armadura de bronze levá-la, tirando sua liberdade: e em Argos você precisar trabalhar em outro tear e carregar água da nascente Messeida ou Hipereia, tudo contra a sua vontade. [...] [ 182 ]
A escravização de prisioneiras, e seu uso como concubinas e presa de guerra, manteve-se desde a época do épico de Homero até o período moderno. Sobre a Grécia dos séculos IX e X a.C., o historiador M. I. Finley afirma:
Existiam numerosos escravos; eles eram propriedade, ficavam disponíveis.
Com mais exatidão, havia escravas mulheres, pois guerras e invasões eram as maiores fontes de fornecimento, e quase não havia motivo, econômico ou moral, para poupar a vida dos homens derrotados. Como regra, os heróis
matavam os homens e levavam as mulheres, independentemente da posição. [
O historiador William Westermann, com base em um estudo detalhado de fontes históricas e literárias, descreve a prática da escravização de prisioneiras em toda a Antiguidade. [ 184 ] Durante a guerra do Peloponeso, por exemplo, afirma Westermann, os gregos matavam os inimigos homens em vez de recorrer à “prática
estabelecida de trocar prisioneiros e soltar homens capturados mediante pagamento de resgate. As mulheres prisioneiras, nesses
casos, costumavam ser colocadas no mercado como escravas”. [ 185
] Tucídides, em sua obra História da Guerra do Peloponeso,
menciona vários exemplos de assassinato de prisioneiros homens e escravização de prisioneiras mulheres. Alguns exemplos podem nos dar uma explicação mais adequada: “o número de plateus mortos foi de pelo menos 200 [...] e as mulheres foram vendidas como escravas”. Depois: homens corcireus foram mortos, “mas as mulheres que haviam sido capturadas no forte foram vendidas para fins de escravidão”. E em outro trecho: “Os atenienses reduziram os cioneus sitiando-os, mataram os homens adultos e fizeram mulheres e crianças de escravas”. [ 186 ]
A prática não estava restrita aos gregos e romanos. Sobre tribos germânicas no Império Romano, aproximadamente no século II d.C., E. A. Thompson escreve:
Alguns povos germânicos matavam seus prisioneiros, ou, fosse como fosse, os prisioneiros homens adultos após uma campanha [...]. Agora é uma prática bastante comum entre os povos primitivos matar os guerreiros de um inimigo derrotado e escravizar as mulheres e seus filhos. Mas essa prática é comum apenas nos estágios mais baixos de desenvolvimento da agricultura. Nos estágios mais avançados, a frequência do costume cai de modo drástico, enquanto ocorre um aumento igualmente drástico na prática de escravizar guerreiros capturados. [ 187 ]