É óbvio que a dominância praticada a princípio sobre mulheres do próprio grupo foi transferida com mais facilidade a mulheres capturadas do que a homens nessa mesma situação. [ 188 ]
Evidências linguísticas de que mulheres foram escravizadas antes dos homens também são sugestivas: o sinal cuneiforme acádio para
“mulher escrava” era “mulher” mais “montanha”, o que parece indicar a origem estrangeira de mulheres escravas. Aliás, a maioria dos escravos vinha das montanhas do leste, provavelmente da área de Subartu. De acordo com uma autoridade no assunto, o sinal para
“mulher escrava” aparece antes do sinal para “homem escravo”. [ 189
] Isso parece significar que as mulheres, a maioria prisioneiras de
guerra, foram escravizadas antes dos homens.
A. Bakir, ao descrever a escravidão no Egito faraônico, aponta que o verbo “escravizar” significa “trabalho forçado”. O substantivo MR(Y)T, que significa prisioneiros de guerra e servos do templo, também pode significar “pente de tear”. [ 190 ] Isso é interessante, porque mulheres escravas eram bastante utilizadas como tecelãs e trabalhadoras têxteis no Egito e em toda a Antiguidade.
Em um estudo sobre a terminologia grega da escravidão, Fritz Gschnitzer mostra que a palavra grega doela ( doulos) aparece na forma feminina duas vezes na epopeia homérica, mas nunca na forma masculina. Ele observa que há uma quantidade bem maior de mulheres escravas mencionadas nessa epopeia em comparação à de homens, explicando ainda, em uma nota de rodapé, que os gregos tendiam a matar prisioneiros homens e escravizar as mulheres. De forma interessante, em referência ao assunto que será discutido a seguir, alguns escritores afirmam que a palavra doulē
tem o significado duplo de escrava e concubina. De modo semelhante, o termo amphipolos (criada, dama de companhia), que é restrito a mulheres no uso grego desde o período micênico, é também usado às vezes para descrever mulheres escravas.
Gschnitzer acha que o termo era utilizado para designar mulheres
escravizadas que antes eram livres. Isso confirmaria a prática de escravizar mulheres conquistadas e usá-las como servas domésticas. [ 191 ]
F
predispuseram homens a
escravizar mulheres antes que aprendessem a escravizar homens.
Para as mulheres, o terror físico e a coerção, ingredientes essenciais no processo de transformar pessoas livres em escravos, tomaram a forma de estupro. As mulheres eram subjugadas fisicamente por meio de estupros; uma vez grávidas, podiam se apegar a seus senhores em termos psicológicos. Daí surgiu a institucionalização do concubinato, que se tornou o instrumento social para integrar mulheres prisioneiras às famílias dos captores, garantindo a estes não apenas seus serviços fiéis, mas também o de seus filhos.
Todos os historiadores que escreveram sobre escravidão descreveram o uso sexual de mulheres escravizadas. Robin Winks, resumindo o conhecimento histórico existente sobre o assunto, afirma: “O livre acesso sexual a escravas as distingue de todas as outras pessoas tanto quanto sua classificação jurídica como propriedade”. [ 192 ]
Sobre a escravidão babilônica, Isaac Mendelsohn escreve:
No caso da mulher escrava, o senhor tinha direito não apenas sobre seu trabalho, mas sobre seu corpo. Ele ou um membro da família podia conviver livremente com ela sem assumir a menor obrigação. [ 193 ]
A mulher escrava da Babilônia podia também ser alugada como prostituta por um preço fixo, às vezes a um dono de bordel, às
vezes a clientes particulares, com o senhor ficando com o pagamento. Essa prática se disseminou por todo o Oriente Próximo, no Egito, na Grécia e na Roma da Antiguidade – de fato, onde quer que existisse escravidão. Ao descrever a escravidão grega no nono e no décimo séculos a.C., M. I. Finley diz: “O lugar da mulher escrava era em casa, lavando, costurando, limpando, moendo alimentos. [...] Se elas fossem jovens, entretanto, o lugar delas também era na cama do senhor”. [ 194 ] Jovens escravas abasteciam os bordéis e haréns da Antiguidade.
No período moderno, ocorreu na África, na América Latina, nos Estados Unidos e no Caribe. A prática é mundial; exemplos podem ser citados para cada época e cada sociedade escravocrata.
Na Malásia Britânica do século XIX, devedores escravizados tornavam-se “criados” na casa do credor, fazendo suas vontades e servindo como seguidores em aventuras militares. Mulheres escravas ou servas domésticas, adquiridas por meio de escravidão por dívida ou invasões de povoados, eram usadas como trabalhadoras domésticas e objetos sexuais, “dadas” pelos credores a seus serventes homens. [ 195 ]
Na China, do terceiro século a.C. até o vigésimo século d.C., a
“compra de concubinas” era uma prática estabelecida. O mesmo fim era alcançado pela adoção, por parte dos ricos, de crianças vendidas pelos pais pobres em épocas de escassez. O tráfico de meninas, na forma do sistema de adoção de crianças Mui Tsai, ou
“Irmãzinha”, chegou ao século XX, apesar da proibição da escravidão em 1909. Como descreve o próprio nome, consistia sobretudo no tráfico de crianças do sexo feminino, criadas para que se tornassem prostitutas ou servas sexuais. [ 196 ]
O Relatório da ONU de 1948, ao descrever as condições contemporâneas em diversos países muçulmanos, afirma: “A maioria das mulheres escravas combina as funções de servas e concubinas em qualquer lar árabe que tenha recursos para manter uma escrava”. [ 197 ]
A prática de usar mulheres escravas como servas e objetos sexuais tornou-se o padrão para a dominância de classe sobre as mulheres em todos os períodos históricos. De mulheres de classes subordinadas (servas, camponesas, trabalhadoras), esperava-se a servidão sexual a homens de classes mais altas, com ou sem o consentimento delas. O droit du seigneur feudal, o direito à primeira noite, que pertence ao senhor que concedeu à serva o direito de se casar, institucionalizou uma prática já bem estabelecida.
O uso sexual de servas por seus senhores é um dos temas da literatura europeia do século XIX, inclusive na Rússia czarista e na Noruega democrática. O uso sexual de mulheres negras por qualquer homem branco também era característico das relações raciais nos Estados Unidos nos séculos XVIII e XIX, mas resistiu à abolição da escravidão e se tornou, século XX adentro, uma das características de opressão de raça e classe. [ 198 ]
Assim, desde o início, a escravidão significa algo diferente para homens e mulheres. Tanto homens quanto mulheres, uma vez escravizados, eram completamente subordinados ao poder de outros; perdiam autonomia e honra. Homens e mulheres escravos precisavam realizar trabalho não remunerado e não raro serviços pessoais para os senhores. Mas, para as mulheres, a escravidão significava, de modo inevitável, também a servidão sexual a seus senhores ou àqueles que os senhores designassem em seu lugar.
Existem, é claro, em sistemas de escravidão mais desenvolvidos,
vários exemplos de uso e abuso sexual de escravos homens por senhores ou senhoras, mas são exceções. Para as mulheres, a exploração sexual representava a própria definição da escravidão, assim como não representava para os homens. De maneira semelhante, do período inicial do desenvolvimento de classes até o presente, a dominância sexual de homens de classes mais altas sobre mulheres de classes mais baixas é o próprio símbolo da opressão de classe das mulheres. Sem sombra de dúvida, a opressão de classes jamais pode ser considerada equivalente para homens e mulheres.
A
pelos homens
forneceu o modelo conceitual para a criação da escravidão como instituição, a família patriarcal forneceu o modelo estrutural. Na sociedade mesopotâmica, bem como em qualquer outro lugar, a dominância patriarcal na família tomava várias formas: a autoridade absoluta de um homem sobre os filhos; a autoridade sobre a esposa limitada por obrigações recíprocas com os parentes dela; e o concubinato.
O pai tinha o poder de vida e morte sobre seus filhos. [ 199 ] Tinha o poder de cometer infanticídio por abandono ou desamparo. Podia dar as filhas em casamento em troca de um preço para a noiva, mesmo durante sua infância, ou designá-las a uma vida de celibato a serviço do templo. Podia arranjar casamentos para filhos de ambos os sexos. Um homem podia penhorar sua esposa, suas concubinas e seus filhos como garantia por uma dívida sua; se não conseguisse pagá-la, essas “garantias” se tornariam escravos por dívida. Esse poder vinha do conceito de que todo o grupo de
parentes de uma pessoa era responsável por qualquer prejuízo de seus membros. A Lei Hitita antiga assim especificava:
Se um servo aborrecer seu senhor, ou matam-no ou ferem seu nariz, seus olhos ou suas orelhas; ou ele [o senhor] o responsabiliza, e também sua esposa, seus filhos, seu irmão, sua irmã, seus parentes por casamento e sua família, seja um servo homem ou uma serva mulher. [ 200 ]
Nesse caso, que diz respeito a escravos (servos), a punição parece ser equivalente para parentes homens ou mulheres.
O Código de Hamurabi, que provavelmente foi publicado em sua forma atual no quadragésimo ano de reinado de Hamurabi, ou seja, em 1752 a.C., de acordo com Driver e Miles, “não é uma compilação de leis existentes com suas emendas. [...] É uma série de emendas e reformulações de partes da lei em vigor quando foi escrito”. [ 201 ]
Driver e Miles admitem a existência de uma Lei Mesopotâmica comum no terceiro milênio a.C. [ 202 ] Sendo assim, podemos argumentar que as condições sociais refletidas nessas leis são, de modo geral, uma representação da sociedade mesopotâmica.
O Código de Hamurabi definiu o tratamento de dívidas por penhora e impôs certos limites para possíveis abusos. Um homem incapaz de pagar uma dívida poderia penhorar sua esposa e filhos, suas concubinas e filhos, e seus escravos. Poderia fazer isso de duas maneiras: oferecendo seus dependentes como garantia para um empréstimo feito de um mercador a fim de reembolsar sua dívida, ou vendendo diretamente suas garantias. No primeiro caso, o parente podia ser redimido dentro de determinado período em troca do dinheiro emprestado, mas, se o devedor não conseguisse reembolsar sua dívida, as garantias se tornavam escravos comuns,
sujeitos a revenda pelo novo dono. No segundo caso, as garantias se tornavam escravos de imediato. [ 203 ] O abuso físico dos escravos por dívida era restrito pelo CH § 116, que declara que, se uma garantia de dívida que fosse filho de um homem livre morresse por maus-tratos na casa do credor, e se esses maus-tratos pudessem ser comprovados, o filho do credor seria morto. Mas, se a garantia de dívida fosse um escravo, não alguém que nasceu livre,
uma multa em dinheiro seria cobrada, e a dívida estaria liquidada. [
204 ] A clara implicação dessa lei é de que o filho de qualquer
homem poderia ser descartado por um delito do pai, e que os filhos tinham ainda menos direitos do que as garantias de dívida. O fato de não haver menção de penalidades no caso de maus-tratos a mulheres que eram garantias de dívida pode indicar que maltratá-las era algo visto com mais tranquilidade. Por outro lado, o Código de Hamurabi (CH § 117) na verdade representa uma melhora na condição de escravos por dívida ao limitar os serviços da esposa e dos filhos de um devedor a três anos, período após o qual seriam libertados. Antes eles podiam ser mantidos por toda a vida. O CH §
119 especificava que um homem que oferecesse como garantia de dívida sua escrava-concubina, que fosse mãe de filhos dele, mesmo em venda direta, tinha o direito de resgatá-la do novo comprador se reembolsasse o valor da compra. [ 205 ] Embora essas disposições tenham representado certa melhora na sina de mulheres oferecidas como garantia de dívidas, na verdade, elas protegiam os direitos dos maridos (devedores) em oposição aos direitos dos credores.
Duas premissas básicas subjacentes a essas leis permaneceram intocadas: a de que parentes homens têm o direito de dispor de parentes mulheres e a de que a esposa e os filhos de um homem fazem parte de sua propriedade e devem ser usados como tal.
A autoridade absoluta do pai sobre os filhos deu aos homens um modelo conceitual de dominância e dependência temporárias em razão da vulnerabilidade dos jovens. Mas tal modelo não era inadequado para conceituar a dominância permanente de um ser humano sobre outros. O estado de dependência dos jovens era autolimitante; o jovem, por sua vez, chegaria à idade de dominância.
Além disso, esperava-se dos jovens que cumprissem obrigações recíprocas com seus familiares mais velhos. Portanto, a autoridade parental precisava funcionar sob o controle tanto do ciclo da vida quanto do futuro poder em potencial dos jovens. O garoto, observando como seu pai tratava seu avô, aprendia sozinho como tratar o pai quando chegasse sua vez. Assim, o primeiro modelo de interação social com um igual que não fosse totalmente livre era a relação social entre marido e esposa. A esposa, cuja sexualidade já havia sido reificada como uma espécie de propriedade no comércio matrimonial, ainda possuía determinados direitos legais e de propriedade, e poderia impor, pela proteção de seus parentes, certas obrigações às quais tinha direito. É o concubinato, evoluindo dos privilégios patriarcais de homens dominantes da família, que representa a transição de dependência no casamento para a falta de liberdade.
Não existem evidências históricas suficientes para determinar com certeza se o concubinato precede a escravidão ou se surgiu dela.
Embora saibamos de muitos exemplos nos quais homens tinham a primeira esposa e a esposa secundária, às vezes casando-se com duas irmãs, em outras adquirindo a esposa secundária depois, a institucionalização do concubinato envolvendo mulheres escravas parece ter ocorrido antes da promulgação do Código de Hamurabi.
Encontramos no Código diversas regras sobre concubinas escravas
e seus direitos como esposas e mães, e referentes à herança de direitos de seus filhos. Não se pode estabelecer com propriedade, com base em evidências disponíveis, se foi a pronta disponibilidade de mulheres prisioneiras para o serviço doméstico ou o aumento do empobrecimento de agricultores antes independentes que resultou em maior disponibilidade de escravos por dívida, contribuindo assim para a disseminação do concubinato. Parece provável que os dois fatores tenham sido relevantes.
É óbvio que a crescente importância de manter a propriedade privada na família estimulou o desenvolvimento do concubinato como instituição para a preservação das relações patriarcais de propriedade. A falta de filhos de um casal, com as implicações de perda de propriedade na linhagem masculina, podia ser remediada trazendo-se uma concubina para a casa. Um contrato de venda babilônico diz o seguinte:
No 12º ano de Hamurabi, Bunene-abi e sua esposa Belessunu compraram Shamash-nuri de seu pai pelo preço de 5 shekels de prata. [...] Para Bunene-abi, ela é uma esposa, e, para Belessunu, ela é uma escrava. [ 206 ]
É de particular interesse aqui o fato de a concubina ter dupla função: realiza serviços sexuais para o senhor, com o conhecimento e o consentimento da esposa, e é serva desta. Isso difere bastante do relacionamento entre primeira esposa e esposas subsequentes, de muitas sociedades polígamas, em que o status da segunda e da terceira esposas é igual ao da primeira. Cada esposa e seus filhos têm determinados direitos, assim como uma residência específica e obrigações sexuais e econômicas que o marido precisa cumprir de modo a não violar os direitos de nenhuma delas. Assim, a relação
entre servidão sexual ao senhor e prestação de serviços profissionais à esposa parece ser uma característica comum do concubinato no patriarcado.
As narrativas bíblicas do Gênesis, escrito entre 1200 e 500 a.C., refletem uma realidade social semelhante à descrita no contrato de venda babilônico (cerca de 1700 a.C.).
Sarai, envelhecendo sem filhos, implora a Abrão para que tenha relações sexuais com sua criada Agar:
E Sarai disse a Abrão: “Eis que o Senhor me impede de ter filhos; suplico que vá até minha criada; pode ser que eu tenha filhos através dela”. E Abrão ouviu a voz de Sarai. [ 207 ]
De forma semelhante, Raquel implorou ao marido Jacó:
Eis minha criada Bila, vá até ela; que ela possa ter filhos sobre meus joelhos e que eu também tenha filhos através dela. [ 208 ]
Há várias deduções implícitas nesses relatos: a mulher escrava deve servidão sexual ao marido de sua senhora, e o fruto dessa relação conta como prole da senhora. Todas as mulheres devem servidão sexual aos homens em cuja casa moram e são obrigadas, em troca de “proteção”, a gerar filhos. Se elas não puderem, suas escravas podem substituí-las nessa função, da mesma maneira que um homem pode pagar uma dívida com a garantia do trabalho de seu escravo ao credor. O status dependente da esposa “livre” está implícito na patética declaração de Sarai: “Pode ser que eu tenha filhos através dela”. A mulher estéril é considerada defeituosa e inútil; apenas o ato de ter filhos a redimirá. Raquel, antes de
oferecer sua criada a Jacó, exclama: “Dê-me filhos ou morrerei”. [
209 ] Quando enfim “Deus a ouviu e abriu seu ventre”, ela disse:
“Deus tirou de mim a humilhação”. [ 210 ] Não se pode fazer afirmação mais clara sobre a reificação de mulheres e o uso instrumental de esposas.
O Código de Hamurabi especifica um sistema semelhante à prática bíblica no caso de homens casados com uma naditum, uma sacerdotisa proibida de ter filhos. A naditum oferece sua escrava ao marido para ter filhos ou, se não o fizer, o marido tem direito a uma esposa secundária, uma sugetum, uma sacerdotisa de nível inferior ou um tipo de “irmã leiga” para gerar filhos dele. [ 211 ] Se os filhos forem de uma escrava, são considerados filhos da esposa principal, como no caso de Raquel. O CH § 146 trata do caso de uma escrava oferecida por uma sacerdotisa a seu marido, que teve filhos com ele e depois “quer se igualar à senhora por ter tido filhos dele”. Nesse caso, a senhora não pode vendê-la, mas pode “somá-la às demais
escravas”. Se ela não tiver tido filhos, a senhora pode vendê-la. [ 212
Vemos nesses casos, como no caso de Shamash-nuri, a ambiguidade da posição da concubina. O CH § 171 especifica que um pai pode legitimar seus filhos com uma escrava concubina aceitando-os publicamente durante sua vida. Se ele não legitimar os filhos de sua escrava concubina, ela e os filhos tornam-se livres após a morte do pai, mas sem direito à herança. Fica evidente que a mulher escrava melhorou sua condição e a de seus filhos pelo concubinato; mas ela nunca deixou de ser a escrava da primeira
esposa e precisou reconhecer esse papel ambíguo publicamente. [
O padrão de libertar concubinas que tivessem gerado filhos foi incorporado à lei islâmica e se espalhou pelo mundo com a difusão do islamismo. Assim, é uma das características mais comuns da escravidão mundial. De forma semelhante, na Malásia britânica do século XIX, uma escrava concubina tinha direito à liberdade se tivesse gerado filhos de seu senhor. [ 214 ]
O caso chinês, de certo modo, é especial, pois as concubinas podiam alcançar as mais altas posições na sociedade. Durante a dinastia Han, reis e altas autoridades não raro casavam-se com suas concubinas, algumas delas tornando-se assim imperatrizes e mães de reis. Por esse motivo, famílias aristocráticas competiam pelo privilégio de oferecer filhas à corte como concubinas. Ainda assim, em períodos posteriores, uma criança filha de uma pessoa
livre com uma pessoa escrava era sempre considerada escrava. [
O concubinato como forma de ascensão social para mulheres também ocorreu de forma relativamente diferente no Império Inca pré-colombiano (cerca de 1438-1532 d.C.). Com a expansão do Império Inca, a hierarquia de conquista consolidou seu poder controlando a reprodução entre as províncias conquistadas. Isso ocorreu com a instituição da aclla – pela qual as virgens das áreas conquistadas, as acllas, eram recrutadas a serviço do Estado, retiradas de suas aldeias e colocadas para trabalhar com tecelagem e preparação de alimentos para rituais. Geralmente selecionadas entre as famílias locais de classe alta, essas virgens eram destinadas a servir ao deus do Sol ou se tornavam esposas secundárias do Inca. Podiam também ser distribuídas pelo Estado aos homens da nobreza. Eram respeitadas e influentes, por isso, muitas famílias locais consideravam uma grande honra dispor das
filhas para esse serviço. [ 216 ] A ambiguidade do concubinato fica tão evidente aqui quanto nos outros exemplos citados.
Segundo suposição da antropóloga Sherry Ortner, a evolução da hipergamia (casamento de mulheres de classe baixa com homens de classe alta para fins de ascensão social) ou de alianças verticais é um elemento importante de controle social em sociedades estratificadas. A hipergamia depende da castidade forçada de moças de classe baixa antes do casamento. A pureza de uma filha ou irmã pode torná-la elegível a ser a esposa ou concubina de um nobre ou ser selecionada para servir ao templo. Assim, a pureza feminina se torna um recurso familiar, guardado com zelo pelos homens da família. Ortner sugere que essa explicação torna
plausível a cooperação da mulher com sua própria subordinação. [
217 ] No contexto do meu argumento, também ilustra os limites
permeáveis entre o status de esposa, concubina e escrava.
Existem ainda evidências linguísticas que mostram a conexão essencial entre o concubinato e a escravização de mulheres.
A palavra chinesa para “mulher escrava” usada no terceiro e no segundo séculos a.C. era pi, que também significa “humilde”. Ela era usada também para descrever uma concubina de nível inferior ou uma esposa de origem humilde. Resumindo a posição de escravos na China naquele período, o historiador E. G. Pulleyblank afirma: “Um escravo era um membro inferior da família de seu senhor e sujeito às mesmas obrigações [...] que uma criança ou uma concubina”. [ 218 ]
Uma palavra posterior para “escravo”, em uso após o segundo século a.C., era nu, cujos símbolos eram “mão” e “mulher”.
Pulleyblank observa:
Existe outra palavra de pronúncia idêntica a “nu”, “escravo”, mas escrita de forma diferente, que aparece em textos iniciais com o significado de “criança”
ou, de forma coletiva, “esposa e filhos”.
Ele cita inúmeros exemplos desse uso da palavra e conclui: É muito provável, penso eu, que as duas palavras sejam idênticas e que o sentido de “escravo” seja uma derivação posterior do significado original de
“criança” e “esposa e filhos”. [ 219 ]
Isso faz sentido como referência à prática de escravizar esposas e filhos de criminosos, o que é especificado no Código de Shang Yang (cerca de 350 a.C.).
C. Martin Wilbur observa: “Os termos ‘mulher escrava’ e
‘concubina’ às vezes aparecem juntos, como se não existisse grande distinção entre os dois”. [ 220 ]
De maneira semelhante, o termo assírio asirtu, ou esirtu, que deriva da raiz esēru, “amarrar”, é traduzido de modo variado como
“mulher prisioneira” e “concubina”. [ 221 ]
S. I. Feigin conclui:
A mulher prisioneira não tinha a mesma posição em todos os lugares. Mas em nenhum lugar ela era livre, e em todo lugar atuava como concubina. Em geral, a mulher prisioneira tinha mais chances de ascensão do que o asiru, o homem prisioneiro. [ 222 ]
Seja vendo o “concubinato” como uma oportunidade de ascensão social ou como mais um modo de dominância e exploração, a
instituição dele foi não apenas estruturalmente significativa, mas crucial para ajudar homens e mulheres a definir o conceito de liberdade e de falta dela.
Em civilizações antigas, assim como mais tarde na história, várias manifestações de dependência e falta de liberdade coexistiam. Sem dúvida, as relações patriarcais de família, o concubinato e a escravização de estrangeiros coexistiam na Babilônia, na China, no Egito e em outros lugares. Mas é evidente que o conceito de hierarquia e de imposição de falta de liberdade, e por fim a ideia de falta perpétua de liberdade, conforme representada pelo status de um escravo permanente, levaram algum tempo para crescer e evoluir. Em períodos posteriores da história, o conceito de liberdade como direito inalienável de todos os seres humanos levaria muitos séculos para se estabelecer. No estado arcaico e nas cidades-Estados da Antiguidade, um escravo era considerado uma espécie de propriedade, mas ao mesmo tempo um membro dependente da família, com direito a certa proteção. De maneira gradual, conforme a escravidão se tornava o sistema dominante, o status de escravo representava uma categoria inferior de humanos, que passavam o estigma permanente de seu status a gerações futuras. Se esse tipo de escravo é considerado produto final de um processo gradual de desenvolvimento de estratificação, e se a esposa sob a dominância/proteção patriarcal é vista como a manifestação inicial desse processo, então a concubina está em algum lugar entre essas duas manifestações.
No período de aproximadamente mil anos, a ideia de “escravidão”
foi colocada em prática e institucionalizada de maneira a refletir a própria definição de “mulher”. Pessoas do sexo feminino, cujas funções sexuais e reprodutivas haviam sido reificadas em
transações de casamento, eram, no fim do período em discussão, em essência, consideradas diferentes dos homens em relação às esferas pública e privada. Assim como as posições de classe dos homens foram consolidadas e definidas pela relação deles com a propriedade e os meios de produção, a posição de classe das mulheres foi definida por suas relações sexuais.
A distinção entre uma mulher casada e livre e uma escrava manifestava-se em níveis de falta de liberdade. A principal diferença de classe entre uma esposa que vivia sob a dominância/proteção patriarcal do marido e uma escrava que vivia sob a dominância/proteção de seu senhor era que a esposa poderia ser dona de escravo, homem ou mulher, e de outras propriedades. A escrava não podia sequer ser dona de si mesma. A esposa Belessunu, por exemplo, podia ser dona da escrava Shamash-nuri, cujo trabalho a aliviava de determinadas tarefas árduas. Mas Belessunu, a não ser que se divorciasse do marido, não podia fugir por completo das responsabilidades domésticas nem da servidão sexual que se esperava dela. Shamash-nuri, por outro lado, carregava sempre consigo a dupla opressão de trabalho escravo e escravidão sexual. [ 223 ]
A hierarquia entre os homens era embasada nas relações de propriedade, sendo reforçada com poder militar. O lugar das mulheres na hierarquia era mediado pelo status dos homens de quem elas dependiam. Na base, ficavam as mulheres escravas, cuja sexualidade era usada por homens poderosos como se fosse uma mercadoria; no meio, ficava a escrava-concubina, cujo desempenho sexual poderia resultar em sua ascensão social, na concessão de alguns privilégios e no direito à herança para os filhos; no topo ficava a esposa, cuja servidão sexual a um homem dava-lhe direitos
legais e de propriedade. Em algum lugar além da esposa estavam as mulheres excepcionais, que, em razão da virgindade e da função religiosa, gozavam de direitos de outro modo reservados apenas aos homens.
Vamos por fim, mais uma vez, recorrer à literatura para uma explicação metafórica do significado desse desenvolvimento histórico.
A maneira como a competição entre homens se manifesta pela posse e reificação de mulheres foi ilustrada na história de Aquiles, Agamenon e a mulher escrava Briseida. As complexidades das relações homem-mulher em um cenário patriarcal de poder masculino desenfreado são bem ilustradas em outro épico de Homero, a Odisseia. Na ausência de Ulisses, pretendentes assediavam sua esposa, Penélope. Ela defendeu sua virtude com uma artimanha: disse a eles que aceitaria um deles quando terminasse de tecer. Penélope tecia com afinco o dia todo, mas passava as noites desfazendo o que havia tecido. A esposa da tecelagem infinita protege sua virtude com o fruto de seu trabalho, desempenhando com perfeição seu duplo papel econômico e sexual. Enquanto isso, o viajante Ulisses se envolve em diversas aventuras sexuais e heroicas. Ao retornar, Ulisses, furioso, e não sem razão, com a ameaça a seus interesses representada pelos pretendentes, acusa-os:
Vocês destruíram minha casa, dormiram com as criadas à força e cortejaram minha esposa de forma traiçoeira enquanto eu ainda estava vivo. [...] [ 224 ]
Em uma disputa feroz, ele mata todos os pretendentes no pátio de sua casa e manda buscar a escrava Euricleia. Antes, ficamos
sabendo que Euricleia havia sido comprada “bem jovem” por Laertes, pai de Ulisses, pelo “preço de 20 bois”:
E ele a reverenciava mesmo como reverenciava sua querida esposa nos salões, mas nunca se deitou com ela, pois evitava a ira da esposa. [ 225 ]
Euricleia, mesmo sendo uma serva, estava encarregada de 50
criadas de propriedade de Ulisses. Ele ordena: “Conte-me a história das mulheres de meus salões, quais delas me desonram e quais são inocentes”. [ 226 ]
Euricleia diz:
Tens 50 criadas em teus salões a quem ensinamos os meandros dos cuidados com a casa, a cardar lã e oferecer servidão. Doze delas seguiram o caminho da vergonha. [...] [ 227 ]
O garoto, Telêmaco, jovem demais para proteger a mãe e, claro, incapaz de proteger as criadas, observava enquanto o pai assassinava os pretendentes. Mas então Ulisses ordena que ele traga as escravas culpadas e as faça carregar os corpos e lavar o salão. Depois, Telêmaco deverá matá-las “com suas longas espadas”. Mas Telêmaco, subitamente introduzido à masculinidade, recusa-se “a tirar a vida dessas mulheres com uma morte limpa, elas que trouxeram desonra a mim e a minha mãe, e se deitaram com esses galanteadores”. Em vez disso, ele estrangula as mulheres amarrando laços em volta do pescoço delas e içando-as por uma corda robusta. O poeta nos conta: “Os pés delas se debateram por um breve momento, mas não por muito tempo”. [ 228 ]
As escravas virtuosas, assim, com rapidez,
[...] abraçam Ulisses sorridentes e o beijam e afagam sua cabeça, seus ombros e suas mãos com carinho [...] e um doce desejo de chorar e lamentar-se o tomou, pois ele se lembrava de cada uma delas. [ 229 ]
Mulheres escravas, estupradas pelos pretendentes, são mortas pela desonra que trouxeram à casa do senhor. O jovem, que não é forte o bastante para protegê-las, é forte o bastante para matá-las, e de modo brutal. Mas antes elas precisam realizar os serviços domésticos – a morte delas é adiada até que tenham retirado os corpos e limpado o salão, preparando o cenário para o idílio de alegria doméstica, que ocorrerá assim que a desonra da casa tiver sido vingada de maneira apropriada com a morte delas mesmas.
É um tanto assustador perceber o estereótipo da escravidão norte-americana – as criancinhas alegres e as escravas encantadas abraçando e beijando o senhor que retorna à plantação – nesse clássico emblema. As escravas virtuosas, por certo felizes por estarem vivas, beijam “com carinho” o senhor, que, por sua vez, é levado às lágrimas e sente um doce desejo (presumivelmente com conotação sexual), “pois ele se lembrava de cada uma delas”.
Penélope, com destreza e trabalho incessante, foi capaz de defender a própria honra, mas não tentou evitar, nem podia, o assassinato de suas escravas. Barreiras de classe unem Penélope ao marido e ao filho. As vítimas de estupro são culpadas; são desonradas por serem desonrosas. A violação cometida contra elas não configura estupro ou crime sexual, mas um crime de propriedade contra o senhor, que é dono delas. Enfim, as mulheres subordinadas, todas escravas, são divididas: a escrava Euricleia, mero instrumento das vontades de seu senhor e alguém que age
totalmente de acordo com os interesses dele; as “boas” escravas separadas das “más”. Nenhum vínculo de fraternidade pode ser formado em tais condições. Quanto ao senhor, seu amor se manifesta de forma violenta e possessiva. Matar e sentir um doce desejo não são incompatíveis para ele. E o filho do senhor se torna homem ao participar do ataque às escravas.
Aqui o poeta nos oferece uma cena doméstica metafórica das relações entre os sexos no patriarcado. Foi reencenada na China imperial, nas rudimentares comunidades gregas e turcas, de tempos antigos até o século XX, e na vitimação contemporânea dos filhos ilegítimos de mulheres vietnamitas e coreanas com soldados norte-americanos. Também foi reencenada na expulsão indiscriminada, pela própria família, de mulheres de Bangladesh estupradas por soldados paquistaneses invasores.
Isso, em sua manifestação mais extrema, é o produto final de um longo processo histórico de desenvolvimento.
Começou muito antes, em tempos pré-históricos, quando a primeira divisão sexual do trabalho imposta pela necessidade biológica evolutiva demonstrou a homens e mulheres que era possível fazer distinções entre as pessoas com base em características visíveis. Atribuíam-se pessoas a um grupo apenas em razão de seu sexo. É desse potencial socialpsicológico que depende a dominância estabelecida mais tarde. Em condições de complementaridade – interdependência mútua –, as pessoas aceitavam prontamente que grupos divididos por sexo tivessem atividades, privilégios e obrigações diferentes. É bem provável que a subordinação de “mulheres como grupo” a “homens como grupo”, que deve ter levado séculos para se estabelecer com solidez, tenha ocorrido em um contexto de complacência dentro de cada grupo de
parentes, a complacência dos jovens em relação aos mais velhos.
Essa forma de complacência, considerada cíclica, portanto justa –
cada pessoa tem sua vez na subordinação e na dominância –, criou um modelo aceitável de complacência em grupo. Quando as mulheres descobriram que o novo tipo de complacência exigida delas não era da mesma categoria, o sistema já devia estar estabelecido com tanta solidez, que parecia irrevogável.
Como Meillassoux apontou, uma vez estabelecida a dominância masculina, as mulheres passaram a ser vistas de uma nova maneira. Elas podem até, a princípio, ter sido consideradas mais próximas da “natureza” do que da “cultura”, portanto, inferiores, embora não destituídas de poder. Uma vez comercializadas, não eram mais consideradas seres humanos, mas sim instrumentos à disposição dos homens, semelhantes a uma mercadoria. “As mulheres passam a ser reificadas porque são conquistadas e protegidas, enquanto os homens passam a ser os reificadores porque conquistam e protegem.” [ 230 ] O estigma de pertencer a um grupo que pode ser dominado reforça a distinção inicial. Não vai demorar para que as mulheres comecem a ser vistas como um grupo inferior.
O precedente de considerar mulheres um grupo inferior permite a transferência desse estigma a qualquer outro grupo que seja escravizável. A subordinação doméstica de mulheres criou o modelo com base no qual a escravidão se desenvolveu como instituição social.
Quando um grupo é marcado como escravizado, ele carrega o estigma de ter sido escravizado e, pior, o de pertencer a um grupo que é escravizável. [ 231 ] Esse estigma torna-se um fator de reforço que justifica a prática da escravização na mentalidade do grupo
dominante e na mentalidade do grupo escravizado. Se esse estigma for internalizado plenamente pelo grupo escravizado – processo que leva muitas gerações e exige o isolamento intelectual desse grupo
–, a escravização passa a ser entendida como “natural”, portanto, aceitável.
Quando a escravidão se tornou comum, a subordinação de mulheres já era um fato histórico. Se, naquele momento, pensava-se nisso de alguma maneira, deve-se ter incorporado à subordinação de mulheres um pouco do estigma da escravidão: escravos eram, assim como as mulheres, pessoas inferiores que podiam ser escravizadas. As mulheres, sempre disponíveis para a subordinação, eram agora consideradas escravas por serem como os escravos. [ 232 ] A relação entre as duas condições estava na premissa de que todas as mulheres precisavam aceitar como fato o controle de sua sexualidade e de sua função reprodutiva por homens ou instituições dominadas por eles. Para mulheres escravas, a exploração econômica e a exploração sexual estavam ligadas do ponto de vista histórico. A liberdade de outras mulheres, que nunca foi a liberdade de homens, dependia da escravidão de algumas mulheres, e sempre foi limitada pelas restrições de mobilidade e acesso a conhecimento e capacitação. De modo oposto, para homens, o poder estava conceitualmente relacionado à violência e à dominação sexual. O poder masculino depende tanto da disponibilidade de serviços sexuais e econômicos de mulheres na esfera doméstica quanto da disponibilidade e do desempenho tranquilo da força militar.
Distinções de classe e raça, ambas manifestadas a princípio na institucionalização da escravidão, baseiam-se no inextricável
sistema de dominância sexual e exploração econômica presente na família patriarcal e no estado arcaico.
CINCO
A ESPOSA E A CONCUBINA
A
de Leis
Mesopotâmicas – o Código de Hamurabi (CH), as Leis Médio-Assírias (LMA), as Leis Hititas (LH) – e a Lei Bíblica são uma rica fonte para análise histórica. [ 233 ]
O Império Babilônico sobre o qual reinou Hamurabi englobava gente de origens étnicas e culturais diferentes e se estendia do Eufrates até as margens do Tigre, embora seus contemporâneos o
considerassem apenas um rei poderoso entre inúmeros outros. [ 234
] Hamurabi, ao compilar e emendar os já existentes códigos de leis
desse povo diverso sobre o qual reinava, revestiu-os da autoridade de sua posição e da sanção do deus Samas, a fim de expandir o uso e a autoridade dessas leis para todo o seu domínio. Seu código, gravado em uma estela de diorito por volta de 1750 a.C., incluía uma grande consolidação de leis já aplicadas havia centenas de anos. As Leis Hititas e as Leis Médio-Assírias datam do décimo quinto ao décimo primeiro séculos. O código da Aliança foi registrado em algum momento entre o fim do nono e o início do oitavo séculos a.C., sendo embasado em leis formuladas e em vigor havia pelo menos 300 anos.
Observando esses códigos de leis, que representam quatro sociedades diferentes ao longo de um período de milhares de anos, poderíamos desistir da possibilidade de obter uma compreensão sólida das sociedades em questão, não fosse o fato de que parece ter existido uma continuidade de conceitos legais e leis comuns entre elas. [ 235 ] Os Códigos de Leis Babilônicos e assírios demonstram paralelos consideráveis; não se sabe até que ponto, se é que ocorreu, as Leis Hititas foram influenciadas pelos outros dois códigos. As Leis Médio-Assírias são consideradas emendas e esclarecimentos das Leis de Hamurabi. A Lei Hebraica não demonstra influência hitita, mas metade das Leis da Aliança é análoga às Leis de Hamurabi, e outras leis fazem ainda referência, de alguma maneira, a outros Códigos de Leis Babilônicos.
Quando usamos leis como fonte para análise histórica, fazemos certas suposições metodológicas. Supomos que as leis reflitam condições sociais de modo muito específico. O princípio é bem explicado por J. M. Powis Smith:
Em geral, pode-se dizer que a legislação não precede as condições de vida com as quais se pretende lidar, mas surge de condições e situações já existentes que ela busca conduzir e controlar. [ 236 ]
A promulgação de uma lei sempre indica que a prática que está sendo criticada ou sobre a qual se está legislando existe e se tornou problemática na sociedade. Por exemplo, se todos se casarem com o próprio primo ou se ninguém se casar com o próprio primo, não haverá a necessidade de uma lei que proíba ou permita a prática.
Mas, quando encontramos uma lei que bane a prática de casamento
entre primos, podemos presumir que (a) o costume existia e (b) havia se tornado problemático na sociedade.
Nos códigos de leis discutidos, vemos grande ênfase na regulamentação de comportamentos sexuais, com muito mais restrições impostas às mulheres do que aos homens. Isso se reflete na distribuição de temas que as leis abordam. Assim, das 282 leis do Código de Hamurabi, 73 abordam assuntos relativos a casamento e questões sexuais. Das 112 Leis Médio-Assírias restantes, cerca de 59 abordam os mesmos temas. Isso pode indicar a existência de um problema social naquele período ou pode apenas ser uma distorção pelo fato de os achados arqueológicos estarem incompletos. Mas mesmo que tábuas das LMA
desconhecidas até o momento remediassem o desequilíbrio de alguma forma, a forte ênfase na regulamentação do casamento e da conduta das mulheres é impressionante. Das 200 Leis Hititas, apenas 26 tratam de casamento e regulamentação sexual; por outro lado, são mais restritivas para as mulheres do que as dos outros códigos.
Outra consideração metodológica é o fato de o que a lei prevê não ser necessariamente o que se praticava. Podemos presumir que boa parte da Lei Mesopotâmica pretendia registrar ideais de comportamento em vez de regras e precedentes para casos específicos. A Lei de Hamurabi pressupunha “um conjunto fixo de normas aceitas” de moral e comportamento social; apenas casos específicos precisavam de elucidação. [ 237 ] A. L. Oppenheim afirma de modo categórico que o CH “não mostra relação alguma com as práticas legais da época”. [ 238 ] W. G. Lambert observa que a Lei de Hamurabi era, com frequência, impossível de se fazer cumprir, como a cláusula que previa que um cirurgião que não obtivesse sucesso
na cirurgia fosse punido com o decepamento da mão. Isso pode ter sido cumprido em pouquíssimos casos; do contrário, logo teria acabado com a profissão. Além disso, a lei não costumava ser cumprida nem utilizada, como podemos ver pelo fato de que, de milhares de textos remanescentes de processos e transações comerciais, a lei é mencionada em apenas um ou dois casos. [ 239 ]
Esses documentos, que embasam boa parte de nosso
conhecimento sobre a sociedade babilônica, são registros criados sobretudo por gente de classe alta. Portanto, falta-nos o conhecimento sobre a realidade cotidiana de pessoas comuns, o que inseriria os códigos de leis em certo contexto. Com essas limitações em mente, seria um equívoco interpretar a lei de forma literal, ou seja, deduzir de sua existência que ela descrevia comportamentos reais. O que a lei faz é estabelecer limites para o comportamento admissível, além de nos oferecer orientações aproximadas sobre as estruturas sociais subjacentes às leis. Essas orientações nos dizem o que se deve ou não fazer; assim, descrevem melhor os valores de determinada sociedade do que sua realidade.
Em um período no qual ocorreram grandes mudanças em termos de propriedade e relações políticas, a importância variável de certas questões para os legisladores e compiladores pode nos contar algo sobre a consequente mudança de valores. A crescente ênfase dos Códigos de Leis da Mesopotâmia na regulamentação de crimes de propriedade, direitos e obrigações de devedores e controle de escravos, bem como na regulamentação da conduta sexual de mulheres, mostra que questões de gênero, classe e poder econômico eram problemáticas e exigiam definição, e que essa definição unia esses indivíduos de uma maneira bem específica. De
forma semelhante, o rigor da punição para certos crimes é um indício dos valores da comunidade na época da codificação das leis.
O Código de Hamurabi exige a pena de morte para: determinados tipos de roubo; arrombamento; conivência em fugas de escravos; construções com acidentes fatais como resultado; magia negra; sequestro; banditismo; estupro; incesto; causar determinados tipos de aborto; e adultério cometido por esposas.
A lei reflete as relações de classes e gêneros, e, comparando os diferentes códigos de leis, podemos determinar mudanças nessas relações. Por fim, observando os fatos que a lei dá como certos, podemos aprender alguma coisa sobre a estrutura especial e os valores da sociedade.
A L M
administrada individualmente nas
comunidades por juízes e anciãos que formavam um tribunal. É
provável que testemunhas que juravam dizer a verdade fossem tanto compelidas pelo medo da censura de seus vizinhos quanto pelo respeito às abstrações da lei. Muitas das decisões dos juízes, que costumavam ser registradas em tábuas de argila e assinadas por testemunhas, foram preservadas e usadas por historiadores em suas análises sobre as várias leis. No período da Antiga Babilônia, as mulheres participavam do processo judicial como testemunhas e autoras de ações, e não apenas como acusadas.
Subjacente ao CH e às LMA está o conceito da lex talionis, a ideia de que a punição deve exigir uma retribuição física da parte culpada que reproduza a transgressão o máximo possível. Olho por olho, dente por dente etc. A Lei de Hamurabi e, até com mais firmeza, os códigos de leis assírios substituem ônus financeiros, como multas, e punição física controlada, como chicotadas, em algumas das
transgressões. Costuma se considerar isso um “avanço” ao processo de simbolização de punição. [ 240 ] Outro aspecto do pensamento e da prática legal que formam esses códigos de leis diz respeito também à substituição: um homem pode designar membros de sua família, seus servos e/ou escravos para substituí-lo, sofrendo a punição por um crime que ele cometeu. Esse conceito conta mais sobre as reais relações de poder na sociedade do que as regulamentações específicas. É evidente que, naquela época, os homens eram poderosos o bastante para que incorporassem membros da família – mulheres e filhos de ambos os sexos – de modo a oferecê-los como substitutos em caso de punição. A prática de enterrar servos, escravos e serventes com reis e rainhas no mesmo túmulo é uma manifestação ainda mais antiga do poder de incorporar o outro. Esse poder residia a princípio apenas na figura de soberanos, que eram, eles mesmos, considerados deuses ou emissários diretos deles. Para entender o desenvolvimento da hierarquia de classes, é importante observar que esse princípio se estende a chefes de família civis e sem ligação com a realeza, e também notar que tais chefes de família eram, no período discutido, sempre homens.
O Código de Hamurabi reconhece três classes distintas de pessoas: o aristocrata, que inclui sacerdotes e autoridades do governo; o burguês; e escravos. A punição é classificada por classe, presumindo-se que o dano causado a alguém de classe alta mereça punição mais rigorosa do que o dano causado a alguém de classe baixa. Observaremos a seguir como o desenvolvimento e as distinções de classe são diferentes para homens e mulheres. Ao se discutir a Lei Mesopotâmica, é bom lembrar que o status de classe era fluido, e não necessariamente herdado. A sociedade da Antiga
Mesopotâmia era caracterizada, como afirma um de seus principais estudiosos, A. Leo Oppenheim, por um “notável grau de mobilidade econômica: gente pobre espera ficar rica; os ricos têm medo de ficar
pobres; ambos temem a interferência da administração do palácio”. [
241 ] A transição de um status de classe para outro era rápida e, no
caso de devedores, não raro catastrófica para a economia familiar.
Muito da Lei de Hamurabi faz referência à condição de devedores e suas famílias. A colheita de um ano ruim, seca ou quaisquer outros desastres familiares poderiam forçar um homem a fazer um empréstimo. Com as habituais taxas de juros dos agiotas à época, ele logo se via incapaz de pagar o principal da dívida para poder pagar os juros. [ 242 ] Podia adiar a inadimplência por um tempo usando a esposa ou os filhos como garantia. A Lei de Hamurabi limitava o período de escravização de garantias de dívida a três anos. [ 243 ] De acordo com o costume anterior, os devedores da Babilônia podiam ser escravizados por toda a vida.
O Código da Aliança Hebraico (Êxodo 21:2-11) dispõe que o homem escravo por dívida deve ser libertado após seis anos de servidão, deixando para trás esposa e filhos. Se ele escolher ficar com a família, será destinado à escravidão perpétua. A mulher escrava por dívida não deve ser libertada como o homem: ela pode ser redimida, oferecida em casamento ao filho do senhor ou pode se casar com o próprio senhor. A lei especifica que, se o senhor não se casar com ela, deve tratá-la bem ou ela deve ser solta. [ 244 ] Aqui supõe-se que a mulher escrava por dívida tenha sido usada como concubina durante sua escravização. Presume-se também que, uma vez em liberdade, ela não seria elegível para casamento, assim, poderia ser forçada à única alternativa: prostituição. J. M. Powis Smith acredita que “A lei [...] na realidade é cuidadosa e atenciosa
com a mulher escrava, se levarmos em consideração as condições de vida às quais ela era submetida”. [ 245 ] Prefiro dizer que a lei da Aliança oferece mais evidências do uso geral de mulheres escravas como concubinas e das nítidas diferenças entre as posições de classe entre escravos e escravas. Os homens, na escravidão hebraica, podiam voltar a viver como homens livres no sétimo ano.
Mulheres escravas por dívida, por outro lado, podiam ascender socialmente ao concubinato ou até ao casamento, ou decair ao nível da prostituição. O destino delas era determinado pela servidão sexual. Encontraremos o princípio de que o status de classe de um homem é determinado por suas relações econômicas e o de uma mulher, por suas relações sexuais em inúmeros outros exemplos desse período de formação da sociedade de classes. Trata-se de um princípio que continuou válido por milhares de anos.
O que podemos aprender sobre as condições sociais das mulheres mesopotâmicas com base nos códigos de leis?
A sociedade patriarcal tinha como características a linhagem patrilinear, leis de propriedade que garantiam aos filhos meninos direito à herança, dominância masculina nas relações de propriedade e entre os sexos, burocracias militares, políticas e religiosas. Essas instituições eram sustentadas pela família patriarcal e, por sua vez, recriavam-na de modo incessante.
Famílias babilônicas valorizavam muito mais o nascimento de meninos do que o de meninas. Os filhos levavam adiante o nome da família e podiam aumentar a propriedade e o benefício da família por meio da boa administração, do heroísmo militar e/ou da servidão ao templo ou rei. Também eram considerados essenciais para o bem-estar dos pais na vida após a morte, pois apenas eles podiam realizar determinados rituais religiosos para os mortos. Por causa
dessas considerações, casais sem filhos, eunucos ou homens e mulheres solteiros – dentre as mulheres solteiras, sobretudo as sacerdotisas – adotavam crianças para garantir o cuidado próprio na velhice.
A
sobre seus filhos era ilimitada, como já visto.
No CH, o comportamento rebelde de um filho bater no pai era considerado crime grave, que podia ser punido decepando-se a mão do filho. No caso de um filho adotivo que quebrasse o vínculo parental repudiando o pai que o adotou, a pena era cortar a língua do filho (CH §§ 192-193). A Lei Hebraica é ainda mais rigorosa, exigindo a morte do filho pelo crime de bater no pai ou na mãe. [ 246 ]
Vale observar aqui que, no CH, o principal crime é a rebelião do filho contra o pai, com a sacerdotisa desempenhando um papel social semelhante ao de pai. Apenas na Lei Hebraica o crime inclui o pai e a mãe. Entendo isso como um indício de melhoria do papel da mãe na Lei Hebraica. [ 247 ] A possibilidade de um comportamento rebelde por parte de uma filha não é mencionada nas leis, provavelmente porque ela podia facilmente ser forçada ao casamento ou vendida se o seu comportamento fosse um incômodo aos pais.
O grande valor que as filhas tinham para uma família era o potencial de serem noivas. O preço de noiva recebido por uma filha costumava ser usado para financiar a aquisição de uma noiva para o filho. Os casamentos na Mesopotâmia eram, em geral, arranjados pelo pai do noivo, em negociação com o pai da noiva. Às vezes, o próprio noivo negociava com o pai da noiva. A troca de presentes ou dinheiro, que selava o casamento, é tema de muitas leis do Código de Hamurabi. O pai do noivo pagava ao pai da noiva um presente
de noivado ( biblum) e um presente de noiva ( tirhâtum), depois dos quais considerava-se a efetivação do noivado, embora a noiva permanecesse na casa do pai até que a união sexual consumasse o casamento. Em um acordo alternativo, feito geralmente em casos de noiva criança, ela era escolhida pelo pai do noivo e ia morar na casa do sogro. Até que chegasse o casamento, permanecia como serva na casa dos sogros. O fato de esse acordo dar margem a muitos abusos praticados pelo sogro pode ser observado pelas penas rigorosas no CH §§ 155-156 contra o sogro que estuprasse tal garota. Se o filho tivesse morado com a menina antes, o sogro era tratado como adúltero e sofria a pena de morte por afogamento. Se estuprasse uma menina virgem, o sogro deveria lhe pagar uma multa, devolver quaisquer bens que ela tivesse investido no casamento, tais como o dote, e levá-la de volta para a casa de seu pai. [ 248 ] É interessante que a lei diga nesse caso “e um marido atrás de seu coração pode se casar com ela”. Esse é um dos poucos exemplos em que a lei permite à mulher certa liberdade de escolha em relação ao marido, sempre pressupondo que o pai concorde com a escolha. Devemos observar também a referência casual à possibilidade de o filho manter relações sexuais com a noiva criança. Não existe pena para ele, uma vez que, pelo noivado, ela já é sua propriedade.
Casamentos também podiam ser consumados pela assinatura de um contrato de casamento ( riksatum). [ 249 ] Tais contratos podiam dotar a esposa de determinados direitos à propriedade, especificar condições para seus direitos em caso de separação e podiam salvá-
la da possibilidade de se tornar escrava por dívidas contraídas pelo marido antes do casamento.
Após a consumação do casamento, o pai da noiva dá a ela um dote ( seriktum na Babilônia), também conhecido como “acordo”
( nudunnum). Se uma esposa tiver filhos meninos, seu seriktum é passado a eles à ocasião de sua morte (CH §§ 162, 172). A LMA §
29 dispõe de maneira semelhante sobre o dote ser passado de mãe para filhos. [ 250 ] Durante o casamento, o marido administra o seriktum da esposa; após sua morte, a esposa fica de posse dele e o utiliza até o fim da vida, mesmo se casar de novo (CH §§ 173-174). [ 251 ] Se o marido se divorciar da mulher por ela não ter tido filho menino ou por ter alguma doença, e quiser se casar com outra mulher, a primeira esposa tem o direito de ficar na casa dele e ser sustentada por ele até o fim da vida. Se ela não concordar e quiser sair de casa, tem direito à devolução de seu dote. [ 252 ] Quando uma esposa sem filhos meninos morre, seu pai deve devolver o presente de noiva ao genro, que, por sua vez, deve devolver o dote da esposa ao sogro. [ 253 ]
É óbvio que esses acordos financeiros amparados por lei só eram possíveis entre famílias de posses. Aliás, encorajando a homogamia
– o casamento entre pessoas de mesmo status social –, essas leis garantiam que a propriedade permanecesse dentro da classe de pessoas de posses. Isso foi obtido com a concessão, aos filhos de ambos os sexos, de direito à herança, sendo que os filhos herdavam à ocasião da morte do pai, e as filhas recebiam herança em forma de dote. A supervisão rigorosa das moças para garantir a castidade antes do casamento e o grande controle da família sobre a escolha do noivo fortaleceram ainda mais a tendência à homogamia. O dote e o dinheiro do acordo formavam um fundo conjunto para o casal, o que tendia a tornar o casamento mais estável, pois cada um deles tinha sua parte. O marido desfrutava da administração das
propriedades dele e da esposa durante a vida, mas tinha de preservar o dote da esposa, tanto para garantir a herança para os filhos quanto para que ela se sustentasse na viuvez. A esposa possuía o direito de uso do dote, portanto, tinha muito interesse em investir e aumentá-lo, da mesma maneira que as sacerdotisas naditum tinham. Isso explica a atividade comercial de mulheres aristocratas e seus consideráveis direitos civis e econômicos. A aparente contradição de mulheres de classe alta terem tais direitos econômicos, mesmo que os direitos sexuais fossem cada vez mais restritos, é um aspecto integrante da formação da família patriarcal.
O antropólogo social Jack Goody, em seu cuidadoso estudo sobre os sistemas de casamento no mundo, caracterizou esse desenvolvimento como comum em sociedades da Eurásia baseadas em agricultura de arado, que apresentam complexa estratificação de classes e divisões elaboradas de trabalho. Tais sociedades costumam desenvolver casamentos monogâmicos patriarcais, homogamia, ênfase rigorosa na castidade pré-nupcial e alto grau de controle da sociedade sobre o comportamento sexual das mulheres.
O caso da Mesopotâmia é um dos primeiros modelos dessa sociedade. [ 254 ]
Embora seja útil mostrar tais ligações e classificar as sociedades pelo mundo afora, revelando a conexão entre propriedade e gênero, devemos levar a análise além e observar que conceder direito de herança a filhos e filhas a fim de preservar a propriedade da família não significa que eles tenham direitos iguais. Na verdade, o exemplo da Mesopotâmia mostra com clareza que lá a propriedade passa de homem para homem, de chefe de família homem para chefe de família homem, mas passa pelas mulheres. A esposa tem o direito de uso de seu dote, porém é o marido (ou filhos meninos) quem tem
direitos adquiridos dessa propriedade, que passa para esses filhos após a morte dela. Em caso de divórcio ou se ela não teve filhos meninos, o dote é devolvido ao pai (ou aos irmãos dela). Uma mulher não pode transferir ou legar sua propriedade; assim, seus direitos são bastante limitados. De forma ainda mais significativa, esses direitos, tais como são, dependem de sua servidão sexual e reprodutiva ao marido – em particular, ao lhe dar filhos meninos.
Onde antropólogos veem uma forte relação causal entre a regulamentação da herança e a propriedade marital e o comportamento sexual, assiriólogos se preocupam mais com casos específicos e como interpretá-los. Existem duas principais interpretações em relação à natureza do casamento babilônico. Na visão de Driver e Miles, a lei do casamento na Babilônia representa um avanço nos direitos das mulheres ao garantir seus direitos econômicos e legais no casamento. Do ponto de vista deles, o tirhâtum não é o preço de compra da noiva, mas um presente simbólico para selar o casamento, um vestígio cultural de um costume anterior de compra de noivas. [ 255 ] Driver e Miles não se detêm sobre a origem e o desenvolvimento do “costume anterior” de compra de noivas. Com base em evidências da criação de contratos de casamento, eles argumentam que tais contratos foram, a partir da época de Hamurabi, o passo fundamental para a legitimação do casamento e a diferenciação entre este e o concubinato. Mostram que os poucos contratos de casamento restantes da Babilônia são muito diferentes de notas de venda. Argumentam também que o fato de o preço de noiva estar sempre abaixo do preço de mercado de uma escrava mostra com clareza que não se tratava de uma representação de preço de venda. [ 256 ]
A opinião contrastante, defendida por Paul Koschaker e pela maioria dos assiriólogos europeus, é a de que o casamento babilônico ocorria por compra, e que o preço de noiva era, na verdade, o pagamento feito pelo noivo – ou sua família – pela noiva.
[ 257 ] Koschaker chama atenção para a existência de duas formas de casamento na região da Mesopotâmia. A mais antiga, que perdurou durante um longo período, é o casamento sem residência conjunta. A esposa permanece na casa do pai (ou da mãe); o marido mora com ela como visitante ocasional ou permanente. Há indícios da existência dessas formas de casamento no Código de Hamurabi e no registro bíblico, em que é chamado de casamento beena. É uma forma de casamento que permite mais autonomia à mulher e lhe facilita o divórcio. Koschaker acha que o CH e as LMA formalizaram a outra forma, o casamento patriarcal, que aos poucos se tornou predominante. Nesse sistema de casamento, a esposa mora na casa do marido e é completamente dependente de seu sustento. O divórcio é, para a esposa, praticamente impossível de se conseguir. Koschaker acredita que esse sistema de casamento tenha começado como casamento por compra, mas que se desenvolveu aproximadamente na época de Gudea de Lagash (por volta de 1205 a.C.), tornando-se casamento por contrato escrito.
Esse desenvolvimento era característico da sociedade suméria; mas sociedades semitas mantiveram a forma inicial de casamento patriarcal. Ambos os conceitos são representados no Código de Leis de Hamurabi. [ 258 ]
O casamento semita por compra contrasta com a forma suméria de casamento, que também era, a princípio, casamento por compra, mas que há muito tempo transcendeu esse conceito. [...] Hamurabi, em sua sabedoria, incorporou os
dois conceitos na lei. Junto ao casamento por compra, ele colocou o casamento
sem o tirhâtum, e, junto a este, o presente de noivado sumério, o nudunnum. [
Assim Koschaker busca explicar as contradições da Lei de Hamurabi, para as quais chamamos atenção. Ele também alerta sobre a leitura vulgarizada de sua hipótese, interpretando-a como se a mulher fosse propriedade tal qual uma escrava. Ele concorda com Driver e Miles em relação ao preço de noiva não ser o equivalente econômico para a esposa. Mas, aponta ele, era seu equivalente judicial. “O casamento é um casamento por compra mesmo quando a relação jurídica resultante não seja a de posse da esposa, mas poder legal do marido sobre ela.” [ 260 ] A distinção é bastante sugestiva do nosso ponto de vista precisamente porque define um novo tipo de relação de poder entre marido e esposa, para a qual não existia equivalente em sociedades anteriores.
Evidências antropológicas modernas parecem corroborar a reconstrução feita por Koschaker de uma evolução histórica do casamento sem residência conjunta para o casamento patrilocal patriarcal. O primeiro é mais característico de tribos nômades e de caçadores-coletores, enquanto o último ocorre em conexão com a agricultura de arado. Nem Driver e Miles nem Koschaker explicam de maneira adequada a origem do casamento por compra; eles apenas presumem sua existência e mostram como se deu. O
entendimento dessa evolução só é possível se considerarmos a classe como fator. O casamento por compra era um fenômeno de classe e não se aplicava da mesma maneira a mulheres de todas as classes.
O direito consuetudinário segundo o qual os homens da família (pais, irmãos, tios) tinham de trocar familiares mulheres para fins de casamento precede o desenvolvimento da família patriarcal, tendo sido um dos fatores que a fizeram ascender. Com o desenvolvimento da propriedade privada e da estratificação de classes, esse direito consuetudinário passou a ter crucial importância econômica. Chefes de família homens agora tinham a obrigação de utilizar familiares para fins de casamento de modo a maximizar as riquezas da família e manter ou melhorar seu status.
As mulheres desempenhavam um papel cada vez mais importante na economia familiar: não apenas como produtoras de bens econômicos, fazedoras e cuidadoras de crianças e trabalhadoras domésticas, mas também como pessoas cujos serviços sexuais foram transformados em mercadorias comercializáveis. Os serviços sexuais e reprodutivos das mulheres é que foram reificados, não as próprias mulheres.
Famílias de classe alta usavam o casamento das filhas para consolidar o próprio poder social e econômico. O casamento firmava alianças militares e comerciais. Os pais podiam oferecer algumas das filhas para servir aos deuses, o que tinha o benefício espiritual de garantir as bênçãos do deus e a vantagem econômica de que o dote da filha, dado ao templo, fosse devolvido à família após sua morte. [ 261 ] Então, o maior número de filhas, em detrimento do de filhos, é que podia ser transformado em vantagem para a família.
Em uma sociedade em que a propriedade de terra e rebanhos significava alto status, o objetivo do casamento passou a ser a perpetuação da linhagem familiar por meio de filhos meninos. A troca de presentes entre duas famílias ricas no casamento de seus filhos firmava as obrigações mútuas das duas famílias e garantia a
passagem de propriedade para familiares homens. O motivo pelo qual o dote era entregue apenas depois de consumado o casamento era porque somente após a mulher se mostrar capaz (ou potencialmente capaz) de ter filhos meninos o objetivo inicial do contrato era atingido. Só então a esposa, como indivíduo, podia ter direitos econômicos e sociais. Mas a determinação sobre seu dote dever passar para os filhos meninos também significava que esses filhos pertenciam à família do pai e levariam adiante sua propriedade. As mulheres eram valorizadas sobretudo como procriadoras, e a dependência vitalícia delas de um homem era institucionalizada. [ 262 ]
As mesmas aspirações à homogamia e à ascensão social pelo casamento produziram resultados bem diferentes em famílias mais pobres. Para elas, a falta de dinheiro para o preço de noiva da esposa de um filho podia ser compensada com o casamento da filha. Mas, como relata a orientalista Elena Cassin: “quem não tinha uma filha jovem que pudesse ser trocada por dinheiro em uma transação de casamento era obrigado a abrir mão de parte do patrimônio da família, oferecendo como preço de noiva um pedaço de terra ou uma casa”. [ 263 ] Tais transações podiam pavimentar o caminho para a ruína econômica da família e gerar dívidas e perda de status.
Quando isso ocorria, a família precisava usar as filhas (e talvez os filhos) como garantia de dívidas ou vendê-los como escravos. As filhas vendidas dessa maneira podiam se tornar concubinas, escravas domésticas comuns ou prostitutas. Também podiam ser compradas por um senhor como esposas para seus escravos. Em todos os casos, a família e a filha sofriam uma perda de status econômico e social.
Na família de classe baixa, que possuía poucos bens ou nenhum, as pessoas (filhos de ambos os sexos) se tornavam propriedade e eram vendidas para a escravidão ou casamentos degradantes. O
principal objetivo era que, assim, abrissem mão de todos os direitos à propriedade da família na qual haviam nascido. Mas o acordo pelo qual o casamento de um filho com uma moça de mesma classe social era possível pela venda da irmã criava para a irmã um casamento por compra.
Vistas dessa forma, as duas interpretações opostas em relação ao casamento mesopotâmico podem ser reconciliadas. O casamento por compra e o casamento por contrato coexistiram desde a época da Lei de Hamurabi em diante. As duas formas de casamento se aplicavam a mulheres de classes diferentes. O conceito de que a noiva era parceira no casamento estava implícito no contrato de casamento de famílias de classe alta. Para mulheres de classe baixa, entretanto, o casamento significava escravidão doméstica. Na Lei Mesopotâmica, e mais ainda na Lei Hebraica, são feitas distinções crescentes entre as primeiras esposas (classe alta) e as concubinas (classe baixa). Todas as mulheres estão sob dominação e regulamentação sexual cada vez maior, mas o grau de falta de liberdade varia conforme a classe. Como mostramos, a esposa está em uma ponta do espectro, a escrava está na outra ponta, e a concubina ocupa uma posição intermediária. Seria um grande equívoco, porém, igualar a posição subordinada de esposa, que tinha direitos econômicos e legais, bem como a possibilidade de possuir outros seres humanos e lucrar com o trabalho deles, com a posição de escrava. Tal interpretação mistifica e invisibiliza as relações de classes.
As Leis de Hamurabi regulamentavam o comportamento sexual de modo a acentuar a diferença entre a apropriação de mulheres por escravização e a aquisição de mulheres pelo casamento. Em toda a Lei Mesopotâmica, e ainda mais na Lei Hebraica, podemos observar a drástica distinção entre primeiras esposas e concubinas, entre mulheres casadas e escravas.
A maioria dos casamentos era monogâmica. Discutimos antes as circunstâncias especiais nas quais um homem podia ter uma segunda esposa (concubina): se ele se casasse com uma sacerdotisa naditum ou se a esposa fosse estéril. Em ambos os casos, a mulher podia oferecer a ele uma escrava para ter os filhos em seu lugar. Ficava a critério do marido aceitar ou rejeitar esse acordo. A posição ambígua da concubina foi reforçada na Lei de Hamurabi, que a proibia de “se igualar à sua senhora”. [ 264 ] Uma escrava concubina que tivesse filhos meninos e, por isso, almejasse status semelhante ao da senhora, poderia, de acordo com a lei, ser tratada como escrava, mas não vendida. Se ela não tivesse filhos meninos e cometesse essa transgressão, poderia ser vendida. [ 265 ]
Um contrato de casamento babilônico com uma segunda esposa especifica que a concubina é obrigada a servir à primeira esposa,
moer suas refeições diárias e carregar sua cadeira até o templo. [
266 ] A história bíblica da expulsão de Agar, a escrava oferecida pela
estéril Sarai a Abrão para que tivesse o filho dele, ilustra a prática contínua de fazer distinção de status entre a primeira esposa e a escrava concubina. [ 267 ]
A Lei Hebraica, em particular, eleva a esposa legítima e mãe.
Mencionemos apenas o progresso da Lei de Hamurabi, que exige que os filhos meninos respeitem os pais, para os Dez Mandamentos e o Êxodo 21:15, que torna lei fundamental que todos os filhos
respeitem e honrem ambos, pai e mãe. As obrigações rigorosas das mulheres em relação a marido e filhos na Lei de Hamurabi e na Lei Hebraica podem, assim, ser vistas como um fortalecimento da família patriarcal, o que depende da cooperação voluntária das esposas em um sistema que lhes oferece benefícios de classe em troca de sua subordinação em questões sexuais.
A dominância masculina nas relações entre os sexos manifesta-se com mais clareza na institucionalização do duplo padrão na Lei Mesopotâmica.
A Lei de Hamurabi especificava a obrigação do homem de sustentar sua esposa (CH §§ 133-135) e identificava suas obrigações em relação aos parentes homens dela. Os casamentos costumavam ser monogâmicos, mas os homens podiam cometer adultério livremente com meretrizes e escravas. Em geral, o costume de ter uma segunda esposa de classe mais baixa ocorria apenas no período da Antiga Babilônia. [ 268 ]
A esposa era obrigada por lei a desempenhar seu papel econômico para satisfazer o marido. Um homem podia se divorciar da esposa ou reduzi-la ao status de escrava e se casar com uma segunda mulher se ela “persistisse em se comportar de forma néscia, arruinando a casa e depreciando o marido” (CH § 141).
Nesse caso, o marido precisava buscar uma condenação em corte antes de dissolver o casamento. [ 269 ] Quanto às obrigações sexuais, a virgindade da noiva era condição para o casamento, e qualquer acordo poderia ser cancelado caso fosse descoberto que ela não era virgem. No casamento, a esposa devia fidelidade absoluta ao marido. L. M. Epstein, em seu estudo de leis e costumes relacionados ao sexo na Antiguidade, resume assim a posição da mulher:
[...] o adultério só é possível da parte da esposa, pois ela é propriedade do marido, mas não da parte do marido. [...] a esposa deve lealdade ao próprio casamento; o marido deve lealdade ao casamento de outro homem. [ 270 ]
Aqui, Epstein parece concordar com Koschaker sobre o casamento constituir compra de esposa. Eu argumentaria que, embora a esposa gozasse de direitos consideráveis e específicos no casamento, sexualmente ela era propriedade do homem. Epstein destaca que, de acordo com o conceito de que “adultério era uma violação do direito à propriedade do marido”, ele era a única parte prejudicada, e a “culpa da esposa merecia a pena de morte”. [ 271 ]
Assim, o CH § 129 prevê afogamento tanto para a esposa quanto para o adúltero. “Se o marido desejar que a esposa viva, então o rei deixará seu servo viver.” [ 272 ] Essa linguagem sugere que um homem que pegar a esposa em flagrante deve levá-la até a corte do rei para julgamento. Na prática anterior, o homem e seu parente teriam se vingado sem o auxílio da lei. Outro princípio aqui envolve o conceito de que duas partes erradas devem receber a mesma punição. Se o marido escolher ser leniente com a esposa, a corte deve deixar que o adúltero saia impune. Uma lei paralela no Código Assírio (LMA § 15) é mais específica ao definir esse princípio: se o marido poupar a vida da esposa e “cortar o nariz de sua esposa, ele deve transformar o homem em eunuco; e eles devem desfigurar seu rosto inteiro. Mas, se ele poupar a esposa, ele também isentará o homem”. As Leis Hititas §§ 197 e 198 preveem as mesmas penas e especificam que o marido, se escolher matar a esposa e o adúltero, não será punido. Se ele decidir levar o caso à corte, poderá poupar
a vida de ambos. Se decidir que os dois devem ser punidos, a pena fica a critério do rei, que poderá matá-los ou libertá-los. [ 273 ]
Deixando de lado a assimetria na definição de adultério e a crueldade da punição, o notável sobre essas leis é a crescente autoridade dada ao Estado (rei) em relação à regulamentação de questões sexuais. Onde antes o controle da sexualidade de sua esposa era sem dúvida um assunto particular do marido, a Lei de Hamurabi envolve a corte, mas a principal decisão de vida ou morte continua a critério do marido. A lei assíria restringe o leque de opções do marido e especifica a natureza da punição que ele pode infligir. A lei hitita permite ao marido matar, mas retira-o por completo do processo de aplicar punição alternativa. A Lei Hebraica segue essa direção de modo ainda mais rigoroso, insistindo que os transgressores devem ser levados à corte e que “o adúltero e a adúltera por certo serão mortos” (Levítico 20:10; ver também Deuteronômio 22:22). A forma de punição descrita em Ezequiel 16:38-40 é a execução pública por apedrejamento.
Todos os códigos de leis buscam distinguir entre a esposa culpada, que mantém encontros sexuais dentro ou fora de casa, e a mulher que é estuprada. O estupro de uma noiva virgem que ainda esteja morando na casa do pai é considerado da mesma forma que o adultério. O estuprador é condenado à morte, enquanto ela, desde que prove que resistiu, sai impune (CH § 130). [ 274 ]
Para mulheres, mesmo a acusação de adultério pode ser fatal. Se o marido acusasse a esposa perante a corte, ela poderia se defender fazendo um juramento “pela vida de um deus” (CH § 131).
Entretanto, se a acusação viesse não do marido, mas de pessoas da comunidade, a esposa poderia se defender apenas se submetendo à provação, ou seja, ela precisava “se atirar no rio pelo
marido” (CH § 131). O deus do rio, então, decidia sobre sua culpa ou inocência. [ 275 ]
O divórcio era obtido com facilidade pelo marido, que só precisava fazer uma declaração pública de intenção de divórcio. Os privilégios do marido em relação ao divórcio eram restritos, entretanto, por uma série de disposições relacionadas à propriedade e ao sustento da esposa. Exigiam-se a devolução do dote, metade de suas propriedades ou no mínimo um pouco de prata como “dinheiro de abandono”. [ 276 ]
Era difícil para uma esposa obter o divórcio e apenas aquelas que não tivessem defeitos podiam fazer essa tentativa:
CH § 142
Se uma mulher tiver aversão de seu marido e disser: “Não terás relações comigo”, os fatos de seu caso serão determinados em sua comarca. Se ela tiver se mantido casta e não tiver culpa, enquanto sabe-se que o marido sai (de casa) e a deprecia, essa mulher não será punida; ela poderá pegar o dote de retornar e voltar para a casa do pai.
CH § 143
Se ela não tiver se mantido casta, e sabe-se que sai (de casa), arruína a casa (e) deprecia o marido, será atirada na água. [ 277 ]
A assimetria no rigor da punição por “sair de casa” é com certeza impressionante. A esposa de um homem adúltero, se tentasse pedir o divórcio, corria o risco de ser acusada pelo marido de vários delitos e perder a vida.
Esse duplo padrão ocorre também na Lei Hebraica, que permitia a um homem se divorciar da esposa de acordo com sua vontade, mas
negava à mulher o direito de buscar o divórcio em qualquer circunstância.
T
contra o estupro incorporavam o princípio de
que a parte lesada era o marido ou o pai da mulher estuprada. A vítima tinha a obrigação de provar que havia resistido ao estupro lutando ou gritando; porém, se o estupro fosse cometido no campo ou em um local isolado, a culpa do estuprador era aceita como verdade, uma vez que os gritos da mulher não teriam sido ouvidos.
A Lei de Hamurabi pune o incesto mãe-filho com a morte para ambos (CH § 157), mas pune apenas com o banimento da cidade o pai que estupra a filha (CH § 154). O pai que estupra a jovem noiva do filho antes da consumação do casamento é multado. Mas, se um sogro estupra a esposa do filho após o casamento ter sido consumado, ele é tratado como adúltero e condenado à morte (CH
§§ 155-156). [ 278 ]
A LMA § 55 trata em detalhes do estupro de uma virgem. Se um homem casado estuprar uma virgem que mora na casa de seu pai,
[...] seja dentro da cidade, em campo aberto, à noite na rua (pública), em um armazém ou em um festival na cidade, o pai da virgem tomará a esposa do violador da virgem (e) a dará para ser desonrada; ele não (devolverá) ao marido (mas) ficará com ela. O pai dará a filha que foi violada como esposa ao seu violador. [ 279 ]
Se o estuprador não tiver esposa, deverá pagar o preço de uma virgem ao pai, casar-se com a moça e saber que jamais poderá se divorciar dela. Se o pai da moça não concordar, ele deverá aceitar a multa em dinheiro e “dar a filha a quem ele quiser”.
Aqui vemos o conceito de que o estupro prejudica o pai ou o marido da vítima se levado a conclusões desoladoras sobre as mulheres afetadas: a vítima de estupro pode esperar um casamento indissolúvel com o estuprador; a esposa completamente inocente de um estuprador será transformada em prostituta. A linguagem da lei nos dá uma noção do absoluto “poder de uso” de pais em relação às filhas. [ 280 ] Isso é reforçado pela LMA § 56, que dispõe que, se o homem jurar que a moça estuprada o tiver seduzido, sua esposa será poupada; ele pagará uma multa ao pai da moça (por roubar a virgindade dela e depreciar seu valor), e “o pai lidará com a moça da forma que quiser”. [ 281 ]
Parece bastante improvável que algum estuprador fosse condenado com essa cláusula de escape, a não ser que quisesse aproveitar a ocasião para se livrar da esposa. Por outro lado, a descrição na LMA § 55 dos locais onde é provável ocorrerem estupros poderia mudar de certa maneira nosso conceito de moças respeitáveis morando em reclusão, protegidas pelos muros das casas. É óbvio que a implicação aqui é de que as moças podiam ser encontradas com certa frequência no campo, à noite nas ruas da cidade, em armazéns (possivelmente enquanto compravam alimentos) e em festivais.
Pode ser o indício de uma deterioração geral no tratamento de mulheres casadas ou da natureza mais repressora da sociedade assíria, que, em comparação com a Lei de Hamurabi, que não menciona a punição física de esposas, tem nas LMA três cláusulas a respeito, todas bastante brutais. A LMA § 57 afirma que, se tiver sido ordenado “na tábua” – ou seja, pela lei – o açoite da esposa de um homem, ele deve ser realizado em público. A LMA § 58 reforça a anterior: todas as punições legalmente infligidas às esposas, como o
corte dos seios e a amputação do nariz ou das orelhas, devem ser executadas por uma autoridade. A implicação é de que o marido não pode mais, como talvez tivesse sido capaz em tempos anteriores, executar ele próprio a punição – algo que é semelhante ao desenvolvimento da lei sobre adultério já discutida antes. Para deixar explícita a extensão do poder do marido, a LMA § 59 afirma que, além dos castigos prescritos pela lei, “[...] um homem pode (açoitar) sua esposa, arrancar (seu cabelo), pode ferir e destruir as orelhas (dela). Não há imputabilidade por isso”. [ 282 ]
Por acaso, essa é a última lei nas tábuas de argila em que as Leis Médio-Assírias §§ 1-59 estão inscritas. Dá-nos uma noção nítida da posição miserável das mulheres casadas na sociedade assíria em comparação com a sociedade da Antiga Babilônia.
A
continuava até a viuvez. Sua
posição econômica era melhor se ela tivesse filhos meninos, fosse ela a primeira esposa ou uma esposa secundária. A Lei de Hamurabi previa que ela deveria ser tratada com respeito e desfrutar de residência e sustento vitalícios na casa do marido (ou de seu filho). A escrava concubina do homem falecido deveria ser libertada com os filhos. Como pode se deduzir, a viúva sem filhos ou a mãe de filhas não tinha os mesmos direitos garantidos. [ 283 ] A LMA § 46 parece abordar essa omissão, ao menos de modo parcial.
Ela dá à esposa que não tiver sido contemplada no testamento do marido o direito a alimentação e residência na casa do filho. Se for uma esposa secundária sem filhos meninos, os filhos do marido devem sustentá-la. A lei também faz referência a um caso no qual um dos filhos do marido se casa com a viúva. Esse costume, que na Assíria significava que um filho poderia se casar com a concubina e
as esposas secundárias do falecido – exceto a própria mãe –, possivelmente evoluiu de uma antiga prática semita pela qual um soberano herdava as esposas e concubinas do pai como símbolo de sua herança da realeza. Esses extras parecem refletir o conceito de
que as esposas de classe baixa eram uma espécie de propriedade. [
Como vimos, a Lei de Hamurabi previa também que uma viúva que tivesse propriedades poderia optar por voltar para a casa do pai, levando com ela seu dote e o presente de noiva. Ela poderia se casar de novo, desde que os direitos à propriedade dos filhos fossem protegidos. Na época das Leis Médio-Assírias, entretanto, nem todas as viúvas tinham escolha em relação a um segundo casamento.
Uma mulher cujo noivo morresse antes do casamento poderia receber do sogro um de seus outros filhos. De forma recíproca, se a noiva de um homem morresse, o sogro poderia lhe oferecer uma de suas outras filhas como esposa. A LMA § 33 especifica que uma viúva jovem com filhos será concedida a um dos irmãos do marido ou ao pai dele. Apenas caso não houvesse nenhum parente homem disponível para o casamento é que ela poderia “ir para onde quisesse”. [ 285 ] Nessas leis está implícito o conceito de que a transação de casamento não envolvia um casal individual, mas sim os direitos dos parentes homens de uma família às mulheres de outra família.
Esse conceito é o alicerce da instituição do levirato judaico. L. M.
Epstein explica o princípio envolvido:
A família havia pago por ela [a viúva do filho] e era proprietária dela. [...]
propriedade da família [...] não podia ficar sem uso. [...] Essa mulher [...]
comprada e paga e apta para ser esposa e ter filhos não podia ficar sem um marido. [...] [ 286 ]
Se o marido tivesse falecido sem ter um filho, o novo casamento da viúva com um parente dele resultaria em um filho que seria considerado filho do marido falecido. Uma vez que a situação de uma mulher sem ninguém era precária, se não impossível, o levirato também oferecia à viúva sem filhos “proteção, cuidado e sustento e
[...] os benefícios sociais de [continuar sendo] integrante da família do marido”. [ 287 ] Foge do escopo de nossa pesquisa traçar o complexo desenvolvimento do levirato, conforme instituído na Bíblia e aplicado na tradição judaica. Mas devemos observar que, mais uma vez, ele confirma uma distinção de “classe” entre mulheres – a mulher que teve filhos meninos goza de mais segurança e privilégios do que a mulher que teve apenas filhas ou a mulher sem filhos. Às mulheres era atribuído status mais alto não apenas de acordo com suas atividades sexuais, mas também por suas atividades de procriação.
Leis sobre aborto espontâneo e aborto provocado nos oferecem mais entendimento sobre a relação de sexo e classe. Para a Lei Mesopotâmica, a punição variava de acordo com a classe da vítima.
No caso de mulheres, costumava significar a classe do homem que tivesse direito de propriedade sobre a vítima. Assim, a Lei de Hamurabi diz que, se um golpe desferido contra a filha de um aristocrata causar um aborto espontâneo, a punição é uma multa de 10 shekels, contra 5 shekels caso seja a filha de um burguês. Se o golpe causar a morte da mulher, a punição no primeiro caso é a morte da filha do agressor; se a vítima for a filha de um burguês, a punição é uma multa. Mais uma vez, de acordo com a lex talionis, a
vida da filha do agressor substitui a vida do pai culpado (CH §§ 209-214). [ 288 ]
A lei assíria abrange um vasto leque de casos possíveis. A LMA §
50 prevê que o homem que causar o aborto espontâneo de uma mulher casada verá o mesmo tratamento dado à sua esposa: “os frutos de [seu ventre] serão tratados como [ele] a tratou”. Se o golpe dado matar a mulher grávida, o homem será morto. O princípio se aplica seja a vítima uma mulher respeitável ou uma meretriz. Duas outras disposições são notáveis: a primeira afirma que, se o marido da vítima não tiver filho menino (e a esposa tiver sido golpeada e sofrido um aborto em consequência), o agressor deve ser morto; e a segunda: “se o fruto do ventre for uma mulher, ele paga, apesar
disso, (de acordo com o princípio de) uma vida (por uma vida)”. [ 289
Comparando os dois códigos (CH e LMA), observamos que a pena para quem causa a morte de uma mulher grávida aumentou (nas LMA, o próprio agressor deve morrer, enquanto no CH sua filha é condenada à morte); e que, segundo parece, as distinções de classe entre as vítimas mulheres são mais acentuadas no último código do que no primeiro. Em um caso específico, o aborto espontâneo de uma “dama de nascença, o crime é elevado de lesão civil a crime público. Nesse caso, o agressor deve pagar uma multa alta, receber 50 golpes de vara e “trabalhar para o rei” durante um mês (LMA § 21). Ao que parece, a perda do potencial herdeiro de um nobre era considerada um ataque à ordem social estabelecida, que merecia punição pública e rigorosa. [ 290 ] A respeito de abortos espontâneos sofridos por mulheres de classe baixa, as distinções de classe se dão com vigor na arrecadação de multas, mas, quando a lesão tiver causado a morte da mulher, o agressor deve morrer, não
importando o status social da mulher. Isso pode indicar a evolução de uma distinção legal entre crimes capitais e lesões menores.
A lei hitita é mais simples e menos específica. O homem que causar o aborto espontâneo de uma mulher deve pagar uma multa específica, de acordo com a idade do feto. O valor da multa pelo dano a uma mulher escrava é metade do valor da multa pelo mesmo dano perpetrado a uma mulher livre (LH §§ 17 e 18). [ 291 ] Há várias leis paralelas nos códigos hititas que preveem multas mais baixas por causar o aborto espontâneo da vaca ou da égua de um homem (LH § 77A). Claramente trata-se de legislação sobre propriedade, e não de preocupação por dano a um ser vivo – a mulher grávida.
A Lei Hebraica combina algumas das características das várias Leis Babilônicas. O homem que causar o aborto espontâneo de uma mulher “sem dúvida será multado, de acordo com o que o marido da mulher lhe impuser; e ele pagará conforme os juízes determinarem.
Mas, se houver dano, darás vida por vida, olho por olho. [...]”. [ 292 ]
O princípio implícito em toda essa legislação é de que o crime consiste em privar o marido de um filho menino e, no caso da morte da esposa, de seu potencial futuro de ter os filhos dele. [ 293 ]
A natureza política dessa legislação pode ser observada com mais crueza na LMA § 53, que não tem precedentes no CH. Se uma mulher causar o próprio aborto
[...] (e) acusação (e) prova forem apresentadas contra ela, ela será empalada (e) não será enterrada. [...] Se essa mulher estava escondida (?) quando expeliu o fruto de seu ventre (e) o rei não foi avisado. [...] [a tábua da lei está quebrada]. [ 294 ]
O que impressiona aqui é que, antes de qualquer coisa, o aborto autoinduzido é considerado um crime público, sobre o qual o rei (a corte) deve ser informado. Empalamento e falta de enterro são as penas mais rigorosas executadas no sistema legal médio-assírio, sendo penas públicas para crimes graves. Por que o aborto autoinduzido de uma mulher deveria ser considerado um crime tão grave quanto uma alta traição ou um atentado contra o rei? Driver e Miles, cujas análises sobre as Leis Médio-Assírias são consideradas definitivas, afirmam:
[...] parece contraditório permitir o abandono de bebês indesejados e punir o aborto com as mais rigorosas penas. No caso de uma mulher casada, isso pode se explicar pelo princípio de que é o pai quem tem o direito de abandonar, enquanto a mãe não tem o direito de, com seu ato, privá-lo da escolha e manter o filho vivo ou abandoná-lo para morrer. [ 295 ]
Driver e Miles continuam a argumentação: “O motivo pode ser [...]
que a mulher, por meio dessa transgressão, invocou a ira do céu não apenas sobre ela, mas sobre toda a comunidade”. [ 296 ] Afirmo que essa mudança na lei deve ser considerada no contexto de muitas outras mudanças relacionadas ao controle sexual das mulheres. A punição bárbara para aborto autoinduzido tem a ver com a importância, vista em todas as LMA, da conexão entre o poder do rei (Estado) e o poder do chefe de família patriarcal sobre as esposas e os filhos. Assim, o direito do pai, até então praticado e sancionado pelos costumes, de decidir sobre a vida dos filhos bebês, o que na prática significava a decisão de se suas filhas bebês viveriam ou morreriam, está, nas LMA, equiparado à manutenção da ordem social. O fato de a esposa usurpar esse
direito do homem passou a ser visto como equivalente, em magnitude, a traição ou atentado ao rei.
V
, no intervalo de mil anos que estamos discutindo, como a dominação patriarcal passou de prática privada para lei pública. O controle da sexualidade feminina, antes praticado apenas por alguns maridos ou chefes de família, tornou-se, então, assunto de regulação estatal. A isso, é evidente, sucedeu-se a tendência geral ao aumento do poder do Estado e, em decorrência disso, ao estabelecimento de uma lei pública.
A família patriarcal, a princípio institucionalizada por completo na Lei de Hamurabi, refletia o Estado arcaico em sua mescla de paternalismo e autoridade inquestionável. Mas o que é mais importante que se entenda para se compreender a natureza do sistema sexo/gênero sob o qual ainda vivemos é o inverso desse processo: o Estado arcaico, desde o princípio, reconheceu sua dependência da família patriarcal e igualou o funcionamento obediente da família à ordem no domínio público. A metáfora da família patriarcal como célula, o elemento fundamental do organismo saudável da comunidade pública, foi manifestada primeiro na Lei Mesopotâmica. Foi depois reforçada de modo constante, tanto em ideologia quanto em prática, ao longo de três milênios. O fato de ainda ter influência pode ser representado na maneira como veio à tona na campanha contra a aprovação da Emenda de Direitos Iguais nos Estados Unidos, nos dias atuais.
Durante o segundo milênio a.C., a formação de classes ocorreu de forma que, para as mulheres, o status econômico e a servidão sexual estivessem ligados de modo indissociável. Assim, a posição de classe das mulheres foi desde o início definida de maneira
diferente em relação à posição dos homens. Mudanças estruturais já haviam resultado em uma divisão crescente entre mulheres de classe alta e de classe baixa. Restou à lei institucionalizar essa cisão. Isso pode ser observado de forma drástica em uma Lei Médio-Assíria, que também representa a mais poderosa manifestação de interesse do Estado no controle da sexualidade feminina: a LMA § 40, que regulamentava a aparição pública de mulheres. Discutiremos essa lei, que de fato legislava sobre a divisão das mulheres em classes distintas de acordo com seu comportamento sexual, no próximo capítulo. Para tanto, faremos um leve desvio a fim de discutir o estabelecimento da prostituição, que antecedeu essa medida.
SEIS
O VELAMENTO DA MULHER
“A
,
a profissão mais antiga do
mundo, pode ser observada ao longo de toda a história registrada.” [
297 ] Assim defendem alguns especialistas e o senso comum,
fazendo a prostituição parecer um subproduto “natural” da formação social humana, que dispensa explicação.
Outros especialistas discordam. A “prostituição”, como diz a New Encyclopaedia Britannica: “até onde se sabe, não é uma cultura universal. Em sociedades em que há tolerância sexual, ela costuma ser rara, porque é desnecessária, enquanto em outras sociedades foi bastante suprimida”. [ 298 ]
Em seu tratamento magistral da história da prostituição, o médico alemão Iwan Bloch nos conta que ela surge como um subproduto do controle da sexualidade: “A prostituição aparece entre povos primitivos onde quer que as relações sexuais livres tenham sido restritas ou limitadas. Não é nada mais que um substituto para uma nova manifestação de promiscuidade primitiva”. [ 299 ] Embora isso deva ser verdade, não explica sob que condições a prostituição surge e se torna institucionalizada em determinada sociedade. A
explicação também ignora o aspecto comercial da prostituição, tratando-a como se fosse apenas uma forma variante de acordo sexual entre duas partes em consentimento mútuo. Bloch aceita a existência de um estado “natural” de promiscuidade que mais tarde é suplantado por várias formas de casamento estruturado. Essa teoria do século XIX, elaborada por J. J. Bachofen e pelo etnólogo norte-americano Lewis Henry Morgan, foi o alicerce da análise de Friedrich Engels, que tanto influenciou a teoria feminista moderna:
[...] o heterismo deriva diretamente do casamento grupal, da entrega cerimonial pela qual as mulheres compravam o direito à castidade. A entrega por dinheiro era a princípio um ato religioso; acontecia no templo da deusa do amor, e o dinheiro à época ia para o tesouro do templo. [...] Entre outros povos, o heterismo deriva da liberdade sexual permitida às moças antes do casamento.
[...] Com o surgimento da desigualdade de propriedade [...] o trabalho assalariado aparece esporadicamente lado a lado com o trabalho escravo, e, ao mesmo tempo, como seu necessário correlato, a prostituição profissional de mulheres livres lado a lado com a entrega forçada da escrava. [...] Pois o heterismo é uma instituição social tanto quanto qualquer outra; mantém a antiga liberdade sexual – para benefício dos homens. [ 300 ]
Algumas páginas depois, Engels se refere à prostituição como “o complemento” do casamento monogâmico e prediz seu fim “com a transformação dos meios de produção em propriedade social”. [ 301 ]
Mesmo que destaquemos o evidente viés vitoriano de Engels ao esperar que as mulheres desejem exercer o “direito à castidade”, devemos observar seu entendimento de que a prostituição se originou tanto de mudanças de postura em relação à sexualidade quanto de determinadas crenças religiosas, e que as mudanças nas condições sociais e econômicas na época da institucionalização da
propriedade privada e da escravidão afetaram as relações entre os sexos. Independentemente de quantos equívocos e falhas em evidências científicas sejam revelados na obra de Engels, ele foi o primeiro a nos alertar para essas conexões e enxergar a conexão essencial das relações sociais e sexuais. Com sua formulação da analogia entre a coexistência de trabalho livre e escravo e a coexistência da “prostituição profissional de mulheres livres lado a lado com a entrega forçada da escrava”, ele nos conduziu a uma redefinição do conceito de “classe” para homens e mulheres – que ele mesmo, infelizmente, ignorou em sua obra posterior.
Para que se entenda a evolução histórica da prostituição, precisamos seguir a pista de Engels e examinar sua relação com a regulamentação sexual de todas as mulheres no Estado arcaico, bem como sua relação com a escravização de mulheres. Mas primeiro é preciso abordar a explicação mais difundida e aceita da origem da prostituição: a saber, que ela teve início na “prostituição de templo”.
É uma pena que a maioria das autoridades usem o mesmo termo para abranger um amplo leque de comportamentos e atividades e para englobar pelo menos duas formas de prostituição organizada –
religiosa e comercial – que ocorriam em Estados arcaicos.
Aprendemos, por exemplo, que na sociedade mesopotâmica (e em outros lugares), a prostituição sagrada, que caracterizava antigos cultos de fertilidade e adoração a deusas, levou à prostituição comercial. [ 302 ]
A sequência é no mínimo duvidosa. O uso da expressão
“prostituição sagrada” para toda e qualquer prática sexual relacionada à servidão ao templo nos impede de entender o significado que essas práticas tinham para os contemporâneos.
Portanto, farei a distinção entre “servidão sexual religiosa” e
“prostituição”, termo pelo qual me refiro apenas à prostituição comercial.
A servidão sexual religiosa de homens e mulheres pode datar do Período Neolítico e provir de vários cultos à Deusa-Mãe ou à chamada Grande Deusa em suas várias manifestações. [ 303 ] As evidências arqueológicas da existência de estatuetas femininas, com ênfase em seios, quadris e nádegas, é abundante em toda a Europa, no Mediterrâneo e na Ásia Oriental. Em muitos lugares, tais estatuetas foram encontradas em locais que os arqueólogos interpretaram como sendo santuários, mas não temos como saber de que maneira essas estatuetas eram usadas ou adoradas. E
jamais saberemos.
Em contrapartida, temos vastas evidências historicamente válidas
– linguísticas, literárias, pictóricas e legais – com base nas quais podemos reconstruir a adoração de deusas femininas e a vida e atividades de sacerdotisas na Antiga Mesopotâmia, no Período Neobabilônico.
Os antigos babilônicos acreditavam que os deuses e as deusas de fato viviam no templo, não estando apenas representados ali. A equipe do templo, os vários graus de sacerdotes e sacerdotisas, artesãos, operários e escravos, todos trabalhavam para guardar e alimentar os deuses da mesma forma como talvez tivessem trabalhado para guardar e alimentar um amo. Todos os dias as refeições eram preparadas com cuidado, e tocava-se música para o entretenimento dos deuses. Para pessoas que consideravam a fertilidade sagrada e essencial à própria sobrevivência, cuidar dos
deuses incluía, em alguns casos, oferecer-lhes serviços sexuais. [
304 ] Assim, uma classe específica de prostitutas de templo se
desenvolveu. O que parece ter acontecido foi que as atividades sexuais para e em nome dos deuses ou das deusas eram consideradas sagradas e benéficas ao povo. As práticas variavam conforme os deuses, os diferentes locais e os diferentes períodos.
Também havia, em particular no último período, prostituição comercial, que prosperava perto ou dentro do templo. Mais uma vez: acadêmicos modernos confundem a questão referindo-se a toda essa atividade como prostituição e usando o termo “hierodulo” sem distinção para vários tipos de mulheres que realizavam atividades sexuais, comerciais ou religiosas. [ 305 ] Apenas a partir de 1956, com o surgimento do primeiro volume do Chicago Assyrian Dictionary, foi possível fazer uso mais preciso dos termos e distinguir, como fizeram os babilônicos, os diferentes tipos de servas do templo.
Na época da Antiga Babilônia, as filhas de reis e soberanos eram indicadas como sumas sacerdotisas do deus da Lua ou da deusa Ishtar. As sacerdotisas en ou entu eram as contrapartes dos sumos sacerdotes. Elas usavam vestuário característico: chapéu de aba alta, roupa com pregas, joias e um cetro – a mesma insígnia e as mesmas roupas usadas pelo soberano. Moravam no santuário sagrado, eram responsáveis pela administração e pelos afazeres do templo, realizavam rituais e trabalhos cerimoniais e em geral não eram casadas. A sacerdotisa nin-dingir, na Antiga Suméria, tinha papel semelhante. Assiriólogos acreditam que era essa classe de mulheres que participava anualmente do Casamento Sagrado, personificando ou representando a deusa.
O fundamento para o ritual do Casamento Sagrado era a crença de que a fertilidade da terra e das pessoas dependia da celebração do poder sexual da deusa da fertilidade. É provável que esse rito
tenha se originado na cidade suméria de Uruk, dedicada à deusa Inanna, antes de 3000 a.C. O Casamento Sagrado era da deusa Inanna com o sumo sacerdote, que representava o deus, ou o rei, identificado com o deus Dumuzi. [ 306 ] Em um poema tradicional o encontro é iniciado pela deusa, que manifesta sua avidez pela união com seu amante. Após a união, a terra floresce com rapidez: Plantas cresceram muito ao lado dele,
Grãos cresceram muito ao lado dele,
[...] jardins floresceram com exuberância ao lado dele.
A deusa, feliz e satisfeita, promete abençoar a casa do marido, o pastor/rei:
Meu marido, o agradável armazém, o estábulo sagrado,
Eu, Inanna, o protegerei pois,
Eu cuidarei de sua “casa da vida” [...] [ 307 ]
A encenação simbólica anual dessa união mítica era uma celebração pública considerada essencial para o bem-estar da comunidade. Era a ocasião de uma comemoração alegre, que podia envolver atividade sexual dos adoradores dentro e nos arredores do templo. É importante entender que os contemporâneos
consideravam essa ocasião sagrada, de importância mítica para o bem-estar da comunidade, e que prestavam reverência ao rei e à sacerdotisa e os honravam por realizar esse trabalho “sagrado”.
O Casamento Sagrado foi realizado nos templos de várias deusas da fertilidade por quase 2 mil anos. O jovem deus-amante ou filho da deusa era conhecido como Tamuz, Átis, Adonis, Baal e Osíris em
vários idiomas. Em alguns desses rituais, a união sagrada era precedida pela morte do jovem deus, simbolizando uma estação de seca ou infertilidade que só acabava com sua ressurreição por meio da união com a deusa. Era ela quem podia trazê-lo à vida, torná-lo rei e dar a ele poderes para tornar a terra fértil. Ricas imagens sexuais retratando a alegre adoração da sexualidade e fertilidade permeavam a poesia e o mito, sendo manifestadas em estátuas e esculturas. Ritos semelhantes ao Casamento Sagrado também prosperaram na Grécia clássica e na Roma pré-cristã. [ 308 ]
Embora a maioria das informações sobre sacerdotisas en venha do período da Antiga Babilônia, existem muitas referências a sacerdotisas nin-dingir no Período Neobabilônico em Ur e Girsu. Na era de Hamurabi (1792-1750 a.C.), essas sacerdotisas podiam morar fora do claustro, mas a reputação delas era protegida com cuidado. [ 309 ]
Em seguida na classificação, depois das en e nin-dingir, vinham as sacerdotisas naditum. A palavra naditum significa “deixada sem cultivo”, o que é compatível com as evidências de que elas eram proibidas de ter filhos. [ 310 ] Sabemos bastante sobre as sacerdotisas naditum do deus Samas e do deus Marduque durante a primeira dinastia da Babilônia. Essas mulheres vinham das classes mais altas da sociedade; algumas eram filhas de reis, a maioria era de filhas de altos burocratas, escribas, médicos ou sacerdotes. As naditum do deus Samas entravam novas no claustro e não se casavam. O claustro no qual moravam com as criadas era um grande complexo de construções individuais dentro do templo.
Em escavações, revelou-se que o claustro no templo da cidade de Sippar também continha uma biblioteca, uma escola e um cemitério.
[ 311 ] O claustro abrigava até 200 sacerdotisas de uma vez, mas o
número de naditum foi diminuindo aos poucos após a era de Hamurabi. [ 312 ]
As mulheres naditu levavam dotes abastados para o templo no momento em que se dedicavam ao deus. Quando morriam, o dote era revertido à família. Elas podiam usar esses dotes como capital para transações comerciais e emprestar dinheiro a juros, além de sair do claustro para cuidar de seus vários negócios. As naditum vendiam terras, escravos e casas, faziam empréstimos e doações e administravam rebanhos e campos. São conhecidos os nomes de 185 escribas mulheres que serviam ao templo de Sippar. [ 313 ] Do lucro obtido com as transações comerciais, as naditum faziam oferendas regulares aos deuses em dias de festival. Como não podiam ter filhos, costumavam adotar crianças para cuidar delas quando ficassem velhas. Ao contrário de outras mulheres da época, podiam legar propriedades a herdeiras mulheres, provavelmente familiares que também serviam ao templo como sacerdotisas.
As naditum do deus Marduque não viviam enclausuradas e podiam se casar, mas não podiam ter filhos. Esse grupo de mulheres estava sujeito em particular à regulamentação no Código de Hamurabi. Como vimos, uma naditum podia dar filhos ao marido oferecendo-lhe uma escrava ou uma serva do baixo escalão do templo, chamada sugitum, como concubina ou segunda esposa. A Lei de Hamurabi dispunha de forma elaborada sobre os direitos desses filhos à herança, o que pode indicar a importância da naditum na ordem social. Pode também indicar que a posição social delas havia se tornado precária de alguma forma durante o reinado de Hamurabi ou que passava por algum tipo de mudança. O último fato pode explicar a inclusão do CH § 110, que prevê a pena de morte para a naditum de fora do claustro que entrar em uma taberna
ou administrar tal estabelecimento. Se a “taberna” implica, como o pesquisador parece acreditar, um bordel ou uma hospedaria frequentada por prostitutas, o significado óbvio da lei é que ela proíbe qualquer associação com esse tipo de lugar. A naditum deve não apenas viver de modo respeitoso, mas também zelar para que sua reputação não seja manchada. [ 314 ] A necessidade de registrar essa lei pode indicar certo afrouxamento da moralidade entre os servos religiosos. Também pode ser indício, como discutiremos a seguir, de um maior desejo, por parte dos legisladores (ou dos compiladores de leis), em determinar linhas mais claras de distinção entre mulheres respeitáveis e não respeitáveis.
Kulmashitum e qadishtum eram servas do baixo escalão do templo que costumam ser mencionadas juntas nos textos. A distinção entre elas não é bem compreendida. Os direitos que possuíam à herança estão especificados no CH § 181, de acordo com o qual elas têm direito a um terço de herança do espólio do pai, se não tiverem recebido o dote quando entraram para o templo. Mas têm apenas o direito de uso da porção designada a elas. A herança pertence a seus irmãos. [ 315 ] Driver e Miles interpretam o fato de que a herança dessas servas revertida aos irmãos seja um indício de que não se esperava delas que tivessem filhos. Isso parece se desmentir pelas evidências, de inúmeras fontes, de que as qadishtum, com certa frequência, atuavam como amas de leite –
portanto, elas próprias devem ter tido filhos. Podem ter vivido fora do claustro e se casado depois que passaram determinado período servindo ao templo. Ou podem ter sido prostitutas enquanto serviam ao templo. Se for o caso, terem sido empregadas por pessoas ricas como amas indicaria que o papel social delas não era considerado
desprezível. Para aumentar ainda mais a confusão, existem textos em que a própria deusa Ishtar é chamada de qadishtu. [ 316 ]
Há duas narrativas “históricas” de atividades sexuais dentro e nos arredores de templos babilônicos, tendo as duas influenciado indevidamente historiadores modernos. Uma foi escrita pelo historiador grego Heródoto no quinto século a.C. e pretende descrever a prostituição religiosa no templo da deusa Mylitta; a outra foi escrita pelo geógrafo romano Estrabão cerca de 400 anos depois, corroborando Heródoto. Eis o relato de Heródoto:
Toda mulher nascida no país deve uma vez na vida sentar-se no recinto de Vênus [Mylitta] e ali ter relações com um desconhecido. [...] A mulher que tiver tomado seu lugar não pode voltar para casa até que um dos desconhecidos jogue uma moeda de prata em seu colo e a leve com ele para fora do solo sagrado. [...] A moeda de prata pode ser de qualquer tamanho. [...] A mulher vai com o primeiro que jogar o dinheiro e não rejeita ninguém. Quando ela tiver ido embora com ele, e assim tiver agradado a deusa, ela volta para casa, e a partir daí nenhuma doação, por maior que seja, a persuadirá. As mulheres [...] que são feias precisam ficar muito tempo ali até que possam cumprir a lei. Algumas esperaram três ou quatro anos no local. [ 317 ]
Além de Estrabão, não há confirmação dessa história, e não existem “leis” conhecidas que regulamentassem ou mesmo fizessem referência a essa prática. Heródoto pode ter confundido a atividade de prostitutas ao redor do templo com um rito envolvendo todas as virgens assírias. Outra das histórias de Heródoto, contada a ele por sacerdotes babilônicos, parece ter mais fundamento histórico. Descreve uma torre alta no templo de Marduque, no topo da qual a suma sacerdotisa vivia em um quarto que tinha um sofá e no qual recebia toda noite a visita do Deus. A história é de certa
forma comparável a uma narrativa histórica, datada do primeiro milênio a.C., que descreve como o rei neobabilônico Nabu-naid dedicou a filha como suma sacerdotisa a Sin, o deus da Lua. Ele cercou o edifício onde ela vivia com um muro alto e o mobiliou com ornamentos e móveis finos. Isso seria compatível com o que sabemos sobre as condições de habitação de algumas das sumas sacerdotisas reais e com a crença de que o Deus as visitava toda noite, assim como toda noite comia as refeições preparadas para ele. Heródoto cita isso como um exemplo de “prostituição de templo”, e historiadores modernos que estudam o assunto repetem o que ele diz, tratando essas narrativas como fatos. Eu interpreto a função da sacerdotisa como um exemplo significativo da servidão sexual religiosa, seja realizada de fato ou encenada de modo simbólico. [ 318 ]
A partir das interpretações conflitantes das evidências que temos sobre as atividades das mulheres no templo é difícil chegar a um entendimento do papel social dessas mulheres. O que antes era um trabalho de culto puramente religioso foi corrompido em uma época na qual a prostituição comercial já prosperava nas instalações do templo. O ato de manter relações sexuais com desconhecidos no templo para honrar a fertilidade e o poder sexual da deusa pode ter sido, habitualmente, recompensado com uma doação ao templo.
Adoradores levavam com regularidade oferendas de alimentos, azeite, vinho e bens preciosos para o templo em honra das divindades e na esperança de que recebessem benefícios. Pode-se conceber que essa prática tenha corrompido algumas servas do templo, tentadas a ficar com todas as doações ou parte delas para si mesmas. Os sacerdotes também podem ter incentivado ou permitido o uso de escravas e servas do baixo escalão como
prostitutas comerciais a fim de enriquecer o templo. Isso logo nos leva a duas outras classes de servas do templo. Uma era o grupo das secretu, mencionadas no Código de Hamurabi, em conexão com as leis relativas a herança. Elas eram mulheres do alto escalão, que provavelmente viviam enclausuradas. Driver e Miles sugerem que
talvez
elas
não
tenham
sido
sacerdotisas,
mas
“administradoras” incumbidas das mulheres do templo-harém. “Suas funções correspondem às de um eunuco-mordomo ao guardar o palácio-harém.” [ 319 ] Outras explicações são as de que essa pessoa era um homem disfarçado de mulher ou uma mulher disfarçada de homem. Mas no Código de Hamurabi ela é sempre chamada de mulher, a filha de seu pai, a mãe de uma criança adotada. Essa figura enigmática pode ser alguém que representava um aspecto inicial da adoração à Deusa-Mãe, salientando bissexualidade ou hermafroditismo.
Por fim, havia a classe das harimtu, que eram prostitutas ligadas ao templo. Podem ter sido filhas de escravas e ficavam sob a supervisão de uma administradora do templo de nível inferior. Não está claro se essas mulheres eram consideradas parte do templo-harém. Os textos de Sippar listam 11 mulheres como essas. Esse baixo número aumenta a probabilidade de que tenham sido escravas de propriedade de sacerdotes ou sacerdotisas. Os ganhos profissionais dessas escravas, assim como os de outras trabalhadoras escravas, eram revertidos aos proprietários, que podem ter repassado tal quantia ao templo.
Já na metade do primeiro milênio a.C., se não antes, existiam dois tipos de atividades sexuais realizadas nos templos ou perto deles: ritos sexuais, que faziam parte do ritual religioso, e prostituição comercial. Os templos, assim como as igrejas medievais, eram
centros para uma grande variedade de atividades comerciais. A prostituição de homens e mulheres era visível ao redor deles porque era lá que os clientes estavam. É provável que haja uma relação geográfica entre o templo e a prostituição comercial. A relação causal – a saber, que a prostituição comercial se desenvolveu com base na prostituição de templo – que historiadores tomaram por certa parece bem menos óbvia do que se costuma afirmar.
Podemos considerar algumas evidências linguísticas para entender a evolução da prostituição. Kar.kid, termo sumério para
“mulher prostituta”, aparece em uma das primeiras listas de profissões da época da Antiga Babilônia, em cerca de 2400 a.C.
Como vem mencionada logo após nam.luku, que significa
“qualidade de naditu”, pode-se presumir sua relação com a servidão ao templo. É interessante que o termo kur-garru, “homem prostituto”
ou “animador travestido”, apareça na mesma lista, mas junto de animadores. Isso condiz com a prática relacionada ao culto de Ishtar, na qual homens travestidos apresentavam números de atirar facas. Na mesma lista, encontramos as seguintes profissões femininas: médica de mulheres, escriba, barbeira, cozinheira. É
claro que a prostituição está entre as profissões mais antigas, embora não haja evidências de que seja a mais antiga delas. [ 320 ]
As prostitutas continuaram aparecendo em diversas listas posteriores de profissões do Período Médio-Babilônico. Em uma lista do sétimo século a.C., há uma variedade de mulheres animadoras, bem como homens travestidos, além de parteira, ama, feiticeira, ama de leite e “uma senhora de cabelo grisalho”. As prostitutas estão listadas mais uma vez como kar.kid e harimtu, o termo acádio. É muito interessante que não exista uma mulher
escriba entre os 25 escribas dessa lista, nem uma médica entre os médicos. [ 321 ]
As primeiras referências em textos de tábuas de argila relacionam as harimtu com tabernas. Há até uma frase que diz: “Quando eu me
sento na entrada da taberna, eu, Ishtar, sou uma harimtu amorosa”. [
322 ] Essas e outras referências originaram a associação de Ishtar
com tabernas e com a prostituição ritual e comercial.
A existência de vários grupos de profissões relacionados tanto à servidão sexual religiosa quanto à prostituição comercial não nos diz muito sobre o significado que essas profissões tinham para os contemporâneos. Podemos tentar aprender algo a respeito observando o mais antigo mito poético, “A Epopeia de Gilgamesh”.
O poema, que descreve a bravura de um deus/rei mítico, que pode mesmo ter vivido no início do terceiro milênio a.C., perdurou em diversas versões, sendo a mais completa a versão acádia, baseada em uma versão suméria anterior, escrita em 12 tábuas no início do segundo milênio a.C. No poema, o comportamento agressivo do herói desagradou seus súditos e os reis:
Dia e noite [é desenfreada sua arrogância.]. [...]
Gilgamesh não deixa a donzela para [a mãe dela],
A filha do guerreiro, a nobre esposa! [ 323 ]
Os deuses criam um homem, “sua duplicata”, para combater Gilgamesh. Esse homem selvagem, Enkidu, vive em harmonia com os animais da floresta. “Ele não conhece gente nem terra.” Após Enkidu ser descoberto por um caçador e fugir, o caçador busca conselhos sobre como domá-lo. É aconselhado a usar uma harimtu.
O caçador a leva para a floresta e diz a ela o que fazer:
[...] e ele [Enkidu] possuiu sua maturidade.
Ela não foi tímida quando acolheu seu ardor.
Afastou sua roupa e ele se deitou sobre ela.
Ela ofereceu a ele, o bárbaro, a tarefa de uma mulher,
enquanto o amor dele foi atraído para ela.
Após manter relações sexuais com ela durante seis dias, Enkidu descobre que os animais selvagens estão com medo dele; “ele agora tinha sabedoria, mais entendimento”. A meretriz o aconselha: Venha, deixe-me guiá-lo [até] as muralhas de Uruk,
Até o templo sagrado, residência de Anu e Ishtar,
Onde vive Gilgamesh. [ 324 ]
Enkidu concorda, e a meretriz leva-o até Gilgamesh, que se torna o melhor amigo dele.
A meretriz de templo é uma parte aceita da sociedade; seu papel é honorável – aliás, é ela que é escolhida para civilizar o homem selvagem. A hipótese aqui é de que a sexualidade é civilizatória, agradável aos deuses. A meretriz faz “a tarefa de uma mulher”; portanto, não é diferenciada das outras mulheres por causa de sua ocupação. Ela tem um tipo de sabedoria que doma o homem selvagem. Ele segue seu comando até a cidade da civilização.
De acordo com outro fragmento de Gilgamesh, publicado apenas há pouco tempo, Enkidu depois se arrepende de entrar na civilização. Ele amaldiçoa o caçador e a harimtu por terem-no tirado da vida de liberdade na natureza. Ele declara uma maldição elaborada contra a harimtu:
[...] Amaldiçoá-la-ei com uma grande praga [...]
você não construirá uma casa para sua devassidão
você não entrará na taberna das moças
[...]
[...]
Que a ruína seja o seu sofá,
Que a sombra do muro da cidade seja seu ponto