Que espinhos esfolem seus pés
Que bêbados e beberrões estapeiem seu rosto. [...] [ 325 ]
A natureza dessa maldição nos diz que a harimtu que fez sexo com Gilgamesh tinha uma vida melhor e mais fácil do que a meretriz que faz ponto no muro da cidade e sofre abusos de seus clientes bêbados. Isso confirmaria a distinção que fizemos antes, entre a mulher envolvida com a servidão sexual sagrada e a prostituta comercial. É mais provável que tal distinção tenha existido no início do que no fim do período.
É provável que a prostituição comercial tenha se originado diretamente da escravização de mulheres e da consolidação e formação de classes. A conquista militar causou, no terceiro milênio a.C., a escravização e o abuso sexual de mulheres prisioneiras.
Quando a escravidão se tornou uma instituição estabelecida, proprietários de escravos passaram a alugar escravas como prostitutas, e alguns senhores montaram bordéis comerciais com escravas. A pronta disponibilidade de mulheres prisioneiras para uso sexual privado e a necessidade de reis e governantes, às vezes eles mesmos usurpadores de autoridade, de demonstrar legitimidade ao ostentar riqueza em forma de servas e concubinas originou o estabelecimento de haréns. Estes, em decorrência,
tornaram-se símbolos de poder emulados por aristocratas, burocratas e homens de posses. [ 326 ]
Outra fonte de prostituição comercial foi o empobrecimento de fazendeiros e sua crescente dependência de empréstimos para sobreviver a períodos de escassez, o que levou à escravidão por dívida. Crianças de ambos os sexos eram oferecidas como garantia de dívida ou vendidas para “adoção”. Entre outras práticas, a prostituição de familiares mulheres para benefício do chefe de família pôde se desenvolver com rapidez. As mulheres às vezes acabavam se prostituindo porque seus parentes precisavam vendê-
las para a escravidão ou os maridos empobrecidos necessitavam usá-las dessa maneira. Ou podiam se tornar autônomas, como última alternativa à escravidão. Com sorte, nessa profissão, tinham a possibilidade de ascender, tornando-se concubinas. Na metade do segundo milênio a.C., a prostituição estava bem estabelecida como uma provável ocupação para as filhas dos pobres.
Conforme a regulamentação sexual de mulheres da classe que possuía propriedades se fortalecia, a virgindade das filhas respeitáveis se tornava um recurso financeiro para a família. Dessa maneira, a prostituição comercial passou a ser vista como necessidade social para satisfazer a carência sexual dos homens. O
que continuava problemático era como distinguir com clareza e permanência entre mulheres respeitáveis e não respeitáveis. Talvez outro problema que precisasse de solução fosse como desencorajar os homens ao envolvimento social com mulheres agora definidas como “não respeitáveis”. Ambos os objetivos foram cumpridos pela sanção da Lei Médio-Assíria § 40.
Antes de analisarmos essa lei, precisamos entender que a sociedade assíria era mais militarista e que seu Código de Leis, de
modo geral, era mais rigoroso do que o da Babilônia. Portanto, é difícil dizer quanto essa única lei representa as práticas de outras sociedades mesopotâmicas. Embora não seja encontrada lei semelhante em outras compilações que tenham perdurado, assiriólogos costumam pressupor a prevalência de um conjunto de conceitos legais comuns na região por quase dois mil anos. Outras regulamentações da sexualidade feminina também apresentam semelhanças entre os vários códigos de leis; então, pode-se entender que a LMA § 40 era representativa. Mais importante ainda: a prática do uso de véu, sobre a qual ela legisla, é tão onipresente e ocorre há tantos milênios, que é possível justificar a compreensão de que estamos lidando com o exemplo mais antigo conhecido dessa regulamentação, praticada também em muitas outras sociedades. [ 327 ]
A LMA § 40 diz o seguinte:
Nem [esposas] de [lordes] nem [viúvas] nem [mulheres assírias] que saem na rua podem estar com a cabeça descoberta. As filhas de um lorde [...] seja com um xale, um manto ou [uma capa], devem se cobrir. [...] quando saírem sozinhas, devem se cobrir. Uma concubina que sair com sua senhora deve se cobrir. Uma prostituta sagrada que se casar com um homem deve se cobrir na rua, mas aquela que não se casar deve andar com a cabeça descoberta; ela não deve andar coberta. Uma meretriz não deve andar coberta; sua cabeça deve ser descoberta. [...] [ 328 ]
A lei também especifica que uma moça escrava não deve andar coberta. O véu, que era símbolo e emblema das mulheres casadas, é aqui elevado a uma marca característica, e usá-la se torna um privilégio. Mas a lista parece curiosa. O uso de véu não parece distinguir mulheres livres de mulheres não livres, nem a classe alta
da classe baixa. Meretrizes e prostitutas sagradas não casadas podem ser mulheres livres, mas estão agrupadas com as escravas.
Uma escrava concubina pode usar véu, se acompanhada de sua senhora, mas até mesmo uma concubina nascida livre não pode cobrir a cabeça se sair sozinha. Em uma análise mais detalhada, podemos ver que a distinção entre as mulheres é baseada em suas atividades sexuais. Mulheres domésticas, que servem a um homem e são protegidas por ele, são designadas “respeitáveis” pelo uso de véu; mulheres que não estão sob a proteção nem o controle sexual de um homem são designadas “mulheres públicas”, por isso, sem véu.
Se a lei não fizesse nada além de determinar essas regras, já representaria um divisor de águas histórico para as mulheres: a classificação legal de mulheres de acordo com o comportamento sexual. Mas a lei vai além, especificando a punição para as transgressoras:
[...] aquele que vir uma meretriz usando véu deve prendê-la, obter testemunhas (e) levá-la o tribunal do palácio; eles não devem tirar suas joias (mas) quem prendê-la pode tirar sua roupa; deverão açoitá-la 50 (vezes) com varas (e) derramar piche em sua cabeça.
Aqui, o que começa como uma regulamentação menor e aparentemente insignificante de moralidade de repente é considerado um crime grave contra o Estado. Deve haver testemunhas; a acusada deve ser apresentada diante do “tribunal do palácio”, ou seja, uma corte. As joias da meretriz ficam com ela, presume-se que por serem o instrumento de seu comércio, mas sua punição é cruel. E também altamente simbólica – cobrir sua cabeça com piche mostra o único tipo de “véu” que seu baixo status lhe
permite ter. Em termos práticos, isso também deveria torná-la incapaz de ganhar seu sustento, pois remover o piche exigiria que raspasse a cabeça, ficando desfigurada por um longo tempo.
A lei especifica ainda a punição para uma moça escrava que for pega usando véu: suas roupas serão tiradas dela, e suas orelhas serão cortadas. Pode-se apenas especular sobre o significado da diferença de punição para a meretriz e a moça escrava – perder as orelhas é uma punição menor do que levar 50 golpes de vara? É
mais cruel? Se for, isso reflete o entendimento comum da Lei Mesopotâmica de que a pessoa do escalão mais baixo deve sofrer a punição mais rigorosa? Nesse caso, isso nos diz que o status da meretriz é mais alto que o da escrava? Ao que parece, sim.
O aspecto mais interessante da lei, entretanto, é referente à punição prevista para a pessoa (o homem) que não denunciar a violação da lei do uso de véu:
Se um lorde tiver visto uma meretriz de véu e tiver deixado (ela) escapar sem levá-la ao tribunal do palácio, ele será açoitado 50 (vezes) com varas; suas orelhas serão perfuradas, (por elas) será passado um cordão (e) amarrado nas costas, (e) ele fará o trabalho do rei por um mês inteiro.
A punição para o homem que não denunciar uma escrava de véu é a mesma, exceto pelo fato de que suas roupas também serão tiradas dele por “seu demandante”. Driver e Miles, em sua análise da lei assíria, explicam que não existe lei correspondente nos códigos de lei babilônicos. Esclarecem também o significado da punição do homem: as orelhas furadas com um cordão passando por elas faz com que ele pareça estar de rédeas, “talvez para que
possam ser conduzidos pelas ruas e expostos ao escárnio público”. [
[...] serve para distinguir damas e outras mulheres respeitáveis de meretrizes e escravas. Além disso, embora a lei não imponha penalidade a uma mulher respeitável que não usar o véu, toma todas as medidas para evitar que isso aconteça. [...] Usar o véu é um privilégio das classes mais altas que, por um motivo ou outro, a lei está determinada a manter. É possível que tenha sido uma espécie de extensão do uso do harém, pelo qual uma mulher coberta em particular também devia estar coberta em público. [ 330 ]
Essa análise é astuta, mas os autores admitem que o propósito da lei é “obscuro” para eles.
Muito pelo contrário, o propósito da lei é de uma clareza desoladora. Observamos que o Estado intervém em determinar o vestuário das mulheres criando uma lei e exigindo que apresentem a criminosa diante da corte, com testemunhas e uso de um demandante. Também observamos que, ao contrário de outros crimes descritos nessas leis, o crime de uma mulher em “se cobrir com véu sem autorização” ou “se passar por uma mulher respeitável” é tão grave, que a execução é obrigatória, por meio de punição bárbara, a qualquer homem solidário e desobediente.
Observamos também que a punição é pública – açoitamento, nudez, exibição pelas ruas. Assim, a classificação de mulheres em respeitáveis e não respeitáveis se torna um assunto do Estado.
A LMA § 40 institucionaliza uma ordem de classificação para mulheres: no topo, a dama casada ou sua filha solteira; abaixo dela, mas ainda entre as respeitáveis, a concubina casada, seja escrava, nascida livre ou prostituta de templo; na base, sem dúvida marcadas
como não respeitáveis, a prostituta de templo não casada, a meretriz e a mulher escrava.
A classificação da prostituta de templo não casada, presume-se que a kulmashitum e a qadishtum, no mesmo nível que a meretriz comercial, a harimtu, e a meretriz de templo de origem escrava, é um evidente rebaixamento de classe da primeira. A natureza sagrada da servidão sexual ao templo já não é mais o fator decisivo; cada vez mais, a prostituta de templo é considerada da mesma maneira que a prostituta comercial.
Por que a lei se aplicava com mais rigor às escravas do que às prostitutas? As escravas já eram diferenciadas das mulheres livres pelo penteado e possivelmente por uma marca de ferro quente na testa. O motivo mais óbvio seria que usar o véu poderia esconder essas marcas de identificação, permitindo que uma escrava “se passasse” por mulher livre. Mas a lei também busca fazer uma drástica distinção entre a mulher escrava e a escrava concubina. A última, quando acompanhada de sua senhora – ou seja, pela primeira esposa do senhor –, deveria ser tratada como uma mulher respeitável. Nesse caso, seu status servil era indicado com clareza, como sabemos de casos citados antes, pelo fato de andar atrás da senhora, talvez até carregando seu assento ou outros pertences.
Outras mulheres escravas na casa, que não fossem concubinas, eram identificadas na rua por não usarem véu, revelando assim suas marcas de escravas. O resultado imediato da LMA § 40 seria o de permitir à escrava concubina o reconhecimento público de seu status, diferentemente do que ocorria com o status de escrava comum dentro de casa. Isso condiz com as várias outras práticas sociais e legais, que colocavam as concubinas em uma posição social intermediária entre escravas e esposas livres.
A punição prevista para homens que não fossem cautelosos o suficiente em denunciar e perseguir mulheres transgressoras tinha outras implicações interessantes. Em primeiro lugar, mostra-nos que fazer a lei se cumprir era um problema. Se todos os homens, ou a maior parte deles, estivessem dispostos a impor a lei contra mulheres que a violassem, não seria necessária a punição de homens que não o fizessem. Os homens consideravam a lei irrelevante? Os homens de classe baixa achavam que a lei representava apenas os interesses dos homens de classe alta, portanto, eram indulgentes na cooperação? [ 331 ] Talvez nunca saibamos a resposta a essas perguntas, mas o fato de que a imposição do véu encontrou resistência indica que o cumprimento da lei deve ter sido problemático, pelo menos por um tempo. É
evidente que aqueles que queriam ver a lei cumprida consideravam-na importante para os interesses do Estado, o que significava a elite de homens de posses, burocratas e talvez a classe de administradores do templo.
Como um homem poderia saber se aquela mulher de véu na rua tinha o direito de usá-lo? Isso é um mistério. Com certeza era difícil, se não impossível, distinguir uma mulher de véu de outra, supondo-se que o véu cobria não apenas o rosto e a cabeça, mas também o corpo. [ 332 ] A proibição podia, portanto, não se aplicar a completas desconhecidas. É mais provável que se aplicasse a mulheres acompanhadas de homens. Presume-se que um homem andando pela rua com uma mulher de véu saberia sua posição social. Se ela estivesse de véu sem ter o direito a esse privilégio, ele poderia ser responsabilizado perante a lei. À primeira vista, a ocorrência de um incidente assim – um homem andando pela rua com uma meretriz
ou escrava de véu – parece bastante remota. É de se pensar o motivo da necessidade de uma lei que proíba isso.
Mas e se a intenção da lei fosse desencorajar, ou até proibir, os homens de associação casual e pública com prostitutas e escravas?
O efeito dessa lei seria o de diminuir a posição social dessas mulheres e restringir suas atividades meramente a serviços sexuais comerciais. A lei deve, nesse caso, representar um exemplo inicial das muitas leis sancionadas ao longo dos milênios para regulamentar a prostituição. Essas leis sempre recaíram com rigor desigual sobre a prostituta e o cliente. A obrigação de sair em público identificava a mulher como prostituta e a diferenciava das mulheres respeitáveis. Também tornava a associação de um homem com uma prostituta uma atividade claramente distinta de seu contato social com mulheres respeitáveis.
Nota-se que a LMA § 40 prevê punição apenas para mulheres de classe inferior e homens desobedientes. Por que não se preveem punições para mulheres que não denunciam violadoras da lei do véu? A Lei Mesopotâmica responsabilizava completamente a mulher por seus atos em outros casos. Supunha-se que as mulheres respeitáveis não precisariam de incentivo para colaborar com a lei porque era do interesse delas desencorajar homens da mesma classe de se associarem a mulheres de classe inferior? Ou a lei representava a resposta de pessoas de classe alta de ambos os sexos contra as pessoas de classe baixa que tentavam anuviar as distinções de classes entre as mulheres? A possibilidade de que mulheres de classe alta tivessem interesse nessa legislação não pode ser descartada nem comprovada. O que está claro é que a crueldade e a natureza pública da punição tornaram a intervenção do Estado na moralidade privada a característica dominante da lei.
A formação de classes exige meios visíveis de distinguir quem pertence a qual classe. Roupas, ornamentos ou a falta deles e, no caso de escravas, marcas visíveis de seu status ocorrem em todas as sociedades que tornam essas distinções relevantes. É de menor importância se a LMA § 40 deu início a essa prática em relação às mulheres ou se é apenas o exemplo mais antigo para o qual temos evidências históricas. O importante é examinarmos a forma como as distinções de classes foram institucionalizadas para mulheres e compará-las à maneira como isso se deu com os homens. Qualquer homem identificava pelo véu que a esposa, a concubina ou a filha virgem tinha a proteção de outro homem. Como tal, ela era marcada como intacta e inviolável. De modo oposto, a mulher sem véu era evidentemente marcada como desprotegida, portanto, alvo de qualquer homem. Esse padrão de discriminação visível imposto é recorrente ao longo do período histórico na miríade de regulamentações que colocam “mulheres indecentes” em certos distritos ou certas casas marcadas com sinais claros e identificáveis, ou que as forçam a fazer um registro junto às autoridades e carregar cartões de identificação. De forma semelhante, o modo como a escrava desprotegida é diferenciada da concubina é recorrente em vários outros casos. Um deles é o costume, nos Estados Unidos, durante o período de escravidão e depois, de locais de alimentação segregados para negros e brancos, exceto no caso de pessoas negras bem identificadas como empregadas. Assim, amas e babás negras podiam aparecer em lugares segregados com as pessoas sob seus cuidados; pajens negros podiam acompanhar seus senhores.
O homem toma seu lugar na hierarquia de classes com base em sua profissão ou no status social de seu pai. Sua posição de classe
pode se manifestar pelo sinal comum visível – roupas, local de residência, ornamentos ou a falta deles. Para a mulher, desde a LMA § 40, as distinções de classe têm como base sua relação – ou a falta dela – com um homem que a proteja e seu comportamento sexual. A divisão entre “mulheres respeitáveis”, que são protegidas por seus homens, e “mulheres indecentes”, que saem na rua sem a proteção deles e vendendo seus serviços com liberdade, é a divisão de classes fundamental para as mulheres. Ela diferenciou os privilégios limitados das mulheres de classe alta em comparação à opressão sexual e econômica de mulheres de classe baixa, separando as mulheres umas das outras. Do ponto de vista histórico, isso impediu a formação de alianças femininas interclasses e dificultou a formação da consciência feminista.
O C
H
marca o início da institucionalização da
família patriarcal como um aspecto do poder do Estado. Reflete uma sociedade de classes na qual o status da mulher dependia do status e da propriedade do chefe de família homem. A esposa de um burguês empobrecido poderia, pela mudança de status dele, contra a sua vontade e sem ter feito nada, passar de mulher respeitável para escrava por dívida ou prostituta. Por outro lado, o comportamento sexual de uma mulher casada, como adultério, ou o fato de uma mulher solteira perder a virgindade podiam rebaixá-la de uma maneira que nenhum homem poderia ser rebaixado pelo próprio comportamento sexual. O status da mulher é sempre definido de modo diferente do status do homem da mesma classe, desde aquela época até o presente.
Desde o período da Antiga Babilônia até a época em que o marido tem poder de vida ou morte sobre a esposa adúltera, ocorreram
grandes mudanças também na autoridade de reis e soberanos sobre a vida de homens e mulheres. O poder do chefe patriarcal da família sobre a esposa na época de Hamurabi ainda era um tanto restrito por obrigações de parentesco para com o homem chefe da família da esposa. Já na época das Leis Médio-Assírias, ele é restrito sobretudo pelo poder do Estado. Os pais, com o poder de tratar a virgindade das filhas como um recurso da família, representam uma autoridade tão absoluta quanto a do rei. Crianças criadas e socializadas dentro dessa autoridade crescerão e se tornarão o tipo de cidadão necessário em um reinado absolutista. O
poder do rei era garantido por homens dependentes dele e que lhe eram subservientes, da mesma maneira que a família desses homens era dependente deles e lhes era subserviente. O Estado arcaico foi moldado e desenvolvido na forma do patriarcado.
Assim, a hierarquia e o privilégio de classe eram orgânicos ao funcionamento do Estado. Portanto, uma meretriz que pretendesse aparecer de véu na rua era uma ameaça tão grande à ordem social quanto o soldado ou o escravo rebelde. A virgindade das filhas e a fidelidade monogâmica das esposas se tornaram características importantes da ordem social. Com a LMA § 40, o Estado assumiu o controle da sexualidade feminina, até então sob o controle individual de chefes de família ou grupos de parentes. Desde 1250 a.C., a partir do uso de véu em público até a regulamentação de métodos contraceptivos e do aborto por parte do Estado, o controle sexual das mulheres é uma característica fundamental do poder patriarcal.
A regulamentação sexual das mulheres é subjacente à formação de classes e um dos alicerces que sustentam o Estado.
SETE
AS DEUSAS
V
,
,
a
institucionalização do patriarcado criou limites bem definidos entre mulheres de classes diferentes, embora o desenvolvimento de novas definições de gêneros e costumes a eles associados tenha se mantido de modo desigual. O Estado, durante o processo do estabelecimento de códigos de leis escritos, aumentou os direitos à propriedade das mulheres de classe alta enquanto restringiu seus direitos sexuais e, por fim, os extinguiu por completo. A dependência vitalícia que as mulheres tinham de seus pais e maridos estabeleceu-se de forma tão firme na lei e no hábito, a ponto de ser considerada “natural” e uma dádiva divina. Para mulheres de classe baixa, sua força de trabalho estava a serviço da família ou de quem possuísse a servidão de sua família. Suas funções sexuais e reprodutivas foram transformadas em mercadoria, comercializadas, alugadas ou vendidas conforme o interesse dos homens da família.
Mulheres de todas as classes foram, segundo a tradição mandava, excluídas do poder militar e, até a virada do primeiro milênio a.C., excluídas da educação formal à medida que foi sendo institucionalizada.
Ainda assim, mesmo na época, existiam mulheres poderosas em papéis de poder no trabalho de culto, em representações religiosas e em símbolos. Houve um intervalo de tempo considerável entre a subordinação das mulheres na sociedade patriarcal e o rebaixamento das deusas. À medida que traçarmos as mudanças na posição de imagens divinas masculinas e femininas no panteão de deuses em um período de mais de mil anos, devemos ter em mente que o poder das deusas e de suas sacerdotisas na vida cotidiana e na religião popular continuou em vigor, mesmo quando as deusas supremas foram destronadas. É notável que, em sociedades nas quais as mulheres foram subordinadas em termos econômicos, educacionais e legais, o poder espiritual e metafísico das deusas tenha permanecido ativo e forte.
Temos alguns indícios de como era a prática da religião com base em artefatos arqueológicos, hinos e orações de templo. Em sociedades mesopotâmicas, alimentar e servir aos deuses eram atividades consideradas essenciais para a sobrevivência da comunidade. Esse serviço era realizado por servos homens e mulheres. As pessoas consultavam um oráculo ou adivinho, que podia ser um homem ou uma mulher, para decisões importantes de Estado, sobre guerra e escolhas pessoais importantes. Em casos de necessidade pessoal, doença ou infortúnio, a pessoa podia buscar ajuda do deus ou deusa domésticos dela. Se isso não adiantasse, podia apelar para qualquer um dos deuses ou deusas que tivessem qualidades específicas necessárias para curar sua aflição. Se o apelo fosse a uma deusa, a pessoa doente também precisava da mediação e dos bons serviços de uma sacerdotisa da deusa em questão. Existiam ainda, é claro, deuses masculinos que ajudavam em caso de doença, sendo em geral mediados por um sacerdote.
Por exemplo, na Babilônia, um homem ou uma mulher doente procurava o templo de Ishtar humildemente, deduzindo que a doença fosse resultado de alguma transgressão própria. O
requerente levava oferendas adequadas: alimentos, um animal jovem para sacrifício, azeite e vinho. Para a deusa Ishtar, essas oferendas costumavam incluir imagens de uma vulva, símbolo de sua fertilidade, feita da pedra preciosa lápis-lazúli. [ 333 ] A pessoa necessitada se prostrava diante da sacerdotisa e recitava alguns hinos e orações. Uma oração comum continha os seguintes versos: Benevolente Ishtar, que comanda o universo,
Heroica Ishtar, que cria a humanidade,
que anda perante o gado, que ama o pastor [...]
Você traz justiça aos necessitados, aos que sofrem você traz justiça.
Sem você, o rio não se abrirá,
o rio que nos dá vida não será fechado,
sem você, o canal não se abrirá,
o canal do qual os dispersos bebem,
não será fechado [...] Ishtar, senhora misericordiosa [...]
ouça-me e conceda-me misericórdia. [ 334 ]
Homens ou mulheres da Mesopotâmia, em casos de necessidade ou doença, clamavam com humildade diante de uma imagem da deusa e de sua sacerdotisa. Em palavras que refletem a postura do escravo em relação ao senhor, as pessoas louvavam e veneravam o poder da deusa. Dessa forma, outro hino a Ishtar refere-se a ela como “senhora do campo de batalha, aquela que derruba as montanhas”; “Majestosa, leoa entre os deuses, que conquista deuses enfurecidos, a mais forte entre os soberanos, que guia reis pela coleira; que abre o ventre das mulheres [...] poderosa Ishtar,
como é grande a sua força!”. Sucedendo-se um louvor a outro, o requerente continuava:
Onde você lança os olhos, os mortos acordam, os doentes se levantam; Os confusos, ao ver seu rosto, encontram o caminho certo.
Apelo a você, miserável e perturbado,
torturado pela dor, seu servo,
tenha misericórdia e ouça minha prece! [...]
Eu a espero, minha senhora; minha alma se vira para você.
Eu lhe suplico: amenize minha situação.
Absolva-me de minha culpa, minha maldade, meu pecado,
esqueça meus delitos, aceite meu apelo! [ 335 ]
Podemos notar como os requerentes consideravam a deusa todo-poderosa. No símbolo da vulva da deusa, feito de pedra preciosa e ofertado em seu louvor, celebravam-se a sacralidade da sexualidade feminina e sua misteriosa força de dar a vida, que incluía o poder da cura. E nas próprias preces, apelando à misericórdia da deusa, eles a louvavam como senhora do campo de batalha, mais poderosa do que os reis, mais poderosa do que os outros deuses. Suas preces aos deuses exaltavam de modo semelhante as virtudes do deus e elencavam seus poderes dando-lhes qualidades superlativas. Quero chegar aqui ao seguinte ponto: os homens e as mulheres que ofereciam essas preces em momentos de necessidade deviam considerar as mulheres, assim como o faziam com os homens, capazes de poder metafísico como potenciais mediadores entre deuses e os seres humanos. É uma imagem mental bem diferente da dos cristãos, por exemplo, que, em uma época posterior, oravam para que a Virgem Maria intercedesse junto a Deus em nome deles.
O poder da Virgem está na capacidade de apelar à misericórdia de
Deus; vem da maternidade e do milagre de sua concepção imaculada. Ela não tem poder por si só, e as próprias fontes de seu poder de intercessão a separam de modo irrevogável das outras mulheres. Ao contrário, a deusa Ishtar e outras deusas como ela tinham poder por si mesmas – o mesmo tipo de poder que os homens tinham, derivado da bravura militar e da capacidade de impor sua vontade sobre os deuses ou influenciá-los. E, ainda assim, Ishtar era mulher, dotada da mesma sexualidade das mulheres comuns. Impossível não se admirar perante a contradição entre o poder das deusas e as crescentes limitações sociais impostas sobre a vida da maioria das mulheres na Antiga Mesopotâmia.
A
no status social e econômico das
mulheres, que receberam atenção divergente e dispersa em estudos sobre a Antiga Mesopotâmia, a transição do politeísmo para o monoteísmo e sua consequente mudança na ênfase de deusas poderosas para um único deus masculino é tema de vasta literatura.
O assunto foi abordado do ponto de vista teológico, arqueológico, antropológico e literário. Artefatos históricos e artísticos foram interpretados com as ferramentas de suas respectivas disciplinas; estudos linguísticos e filosóficos colaboraram para a excelência da interpretação. [ 336 ] Com Freud, Jung e Erich Fromm, a psiquiatria e a psicologia foram adicionadas como instrumentos de análise, fazendo nossa atenção se concentrar no mito, em símbolos e arquétipos. [ 337 ] E, nos últimos tempos, inúmeras acadêmicas feministas de várias disciplinas discutiram o período e o tema de mais um ponto de vista – um ponto de vista crítico de hipóteses patriarcais. [ 338 ]
Essa riqueza e essa diversidade de fontes e interpretações tornam impossível sua discussão e crítica apenas neste volume. Portanto, vou me concentrar, como fiz até aqui, em algumas questões analíticas e discutir em detalhes alguns modelos que, creio eu, ilustram padrões maiores.
Em termos metodológicos, a questão mais problemática é a relação entre mudanças na sociedade e mudanças em crenças religiosas e mitos. Arqueólogos, historiadores e historiadores da arte podem registrar, documentar e observar tais mudanças, mas não podem determinar com segurança as causas nem o significado.
Sistemas diferentes de interpretação oferecem respostas variáveis, nenhuma das quais inteiramente satisfatória. No presente caso, parece-me mais importante registrar e avaliar as evidências históricas e oferecer uma explicação coerente, que admito ser um tanto especulativa – assim como o são todas as outras explicações, inclusive, e sobretudo, a da tradição patriarcal.
Suponho aqui que a religião mesopotâmica refletisse as condições sociais, bem como respondia a elas, nas várias sociedades.
Constructos mentais não podem ser criados do vácuo; sempre refletem eventos e conceitos de seres humanos históricos na sociedade. Assim, a existência de uma assembleia dos deuses em
“A Epopeia de Gilgamesh” é interpretada como um indício da existência de construções de aldeias na sociedade mesopotâmica pré-Estado. De modo semelhante, a explicação no mito sumério de Atrahasis de que os deuses criaram os homens para que estes os servissem e os aliviassem do trabalho árduo pode ser considerada uma reflexão sobre as condições sociais nas cidades-Estados da primeira metade do terceiro milênio a.C., em que muitas pessoas trabalhavam em projetos de irrigação e com agricultura centrada nos
templos. [ 339 ] A relação entre mito e realidade não costuma ser tão direta, mas podemos supor que ninguém poderia inventar o conceito de uma assembleia de deuses se não tivesse, em algum momento, vivenciado e conhecido alguma instituição semelhante na Terra.
Embora não possamos afirmar com certeza que determinadas mudanças políticas e econômicas “causaram” modificações em crenças religiosas e mitos, não podemos deixar de observar certo padrão nas mudanças de crenças religiosas em inúmeras sociedades, ocorrendo após ou simultaneamente com determinadas transformações sociais.
Minha proposta é de que, assim como o desenvolvimento da agricultura de arado, coincidindo com o aumento do militarismo, resultou em mudanças importantes nas relações de parentesco e de gênero, o desenvolvimento de fortes reinados e estados arcaicos também originou transformações em sistemas de crenças religiosas e símbolos. O padrão observável é: primeiro, o rebaixamento da imagem da Deusa-Mãe e a ascensão e posterior dominância de seu consorte/filho; depois a fusão deste com um deus da tempestade em um Deus-Criador, que lidera o panteão de deuses e deusas.
Onde quer que ocorram essas mudanças, o poder da criação e da fertilidade é transferido da Deusa para o Deus. [ 340 ]
A antropóloga Peggy Reeves Sanday oferece algumas sugestões metodológicas muito interessantes para a interpretação dessas mudanças. Sanday afirma que o simbolismo de gêneros nas histórias da criação vem a ser um guia confiável para papéis de sexo e identidades sexuais em determinada sociedade. “Ao articular sobre como as coisas eram no início, as pessoas [...] fazem uma declaração essencial a respeito de sua relação com a natureza e sua percepção da fonte de poder do universo.” [ 341 ] Sanday
analisou 112 histórias da criação e as sociedades nas quais ocorreram, encontrando claros padrões definidos. Ela também encontrou uma nítida correlação entre as definições de gênero em histórias da criação e a forma de obter comida desse povo, bem como padrões na criação dos filhos:
Onde os homens buscam animais, os pais são mais distantes da criação dos filhos, e concebe-se o poder como “além do domínio do homem”. Onde a coleta de alimentos é enfatizada [...] pais são mais próximos da criação dos filhos, e as noções sobre o poder da criação voltam-se ao simbolismo feminino ou de casal. [ 342 ]
Dos 112 casos que ela estudou, 50% tinham histórias da criação envolvendo uma divindade masculina, 32% envolvendo um casal divino e 18%, uma divindade feminina. Em sociedades com histórias da criação masculinas, 17% dos pais cuidavam dos bebês, e 52%
dos pais caçavam grandes animais; em sociedades com histórias da criação envolvendo um casal, 34% dos pais cuidavam dos bebês, e 49% deles caçavam; em sociedades com histórias da criação femininas, 63% dos pais cuidavam dos bebês, e 28% caçavam grandes animais. [ 343 ]
Se aplicarmos as generalizações de Sanday – originárias do estudo de povos primitivos contemporâneos – ao passado, podemos esperar pela ocorrência de grandes mudanças sociais e econômicas antes ou mais ou menos na mesma época em que encontramos mudanças nas histórias de criação em sociedades do Antigo Oriente Próximo. [ 344 ] Essas mudanças de fato ocorrem em inúmeras sociedades durante o segundo milênio a.C.
Tentarei revisar esses acontecimentos e depois analisar a importância deles concentrando-me nos principais símbolos e metáforas explicativas. Isso se agrupa ao redor de três perguntas básicas que toda religião precisa responder: (1) Quem cria a vida?
(2) Quem traz a maldade para o mundo? (3) Quem faz a mediação entre humanos e o sobrenatural? Ou: com quem falam os deuses?
Se essas perguntas forem abordadas na discussão sobre mudanças nas principais metáforas, estaremos olhando para as seguintes transformações de símbolos: (1) da vulva da deusa para a semente do homem; (2) da Árvore da Vida para a Árvore do Conhecimento; (3) da celebração do Casamento Sagrado para as alianças bíblicas.
A difusão da veneração da Deusa-Mãe nos períodos Neolítico e Calcolítico foi confirmada por dados arqueológicos. Marija Gimbutas relata que cerca de 30 mil miniesculturas em argila, mármore, osso, cobre e ouro são conhecidas hoje em dia, de um total de cerca de 3
mil sítios só no sudeste da Europa, e que elas confirmam o culto comum à Deusa-Mãe. Gimbutas demonstra, por meio de evidências arqueológicas, que os símbolos culturais neolíticos perduraram até o terceiro milênio a.C. na região do Egeu e até o segundo milênio a.C.
em Creta. [ 345 ] E. O. James fala de um culto à fertilidade que “se estabeleceu com firmeza na religião do Antigo Oriente Próximo com o surgimento da agricultura na civilização neolítica durante e após o quinto milênio a.C.”. [ 346 ]
Há uma profusão de achados arqueológicos de estatuetas femininas, todas destacando seios, umbigo e vulva, em geral em posição agachada, que é a posição que costuma ser adotada para o parto nessa região. Encontramos essa imagem nas camadas mais baixas das escavações de Çatal Hüyük, no nível do sétimo milênio
a.C., na forma de uma deusa grávida dando à luz. As pernas afastadas, o umbigo e a barriga em evidência; e ela está cercada por chifres ou cabeças estilizadas de touros, o que pode simbolizar a procriação masculina. Estatuetas semelhantes foram encontradas em sítios na região do rio Don, na Rússia, no Iraque, na Anatólia, em Nínive, Jericó e no sul da Mesopotâmia.
James, Gimbutas e outros afirmam com segurança que essas estatuetas são evidências do culto à fertilidade comum. Essa afirmação encontrou grandes objeções, por motivos metodológicos.
Como podemos saber, na ausência de evidências corroborativas, o significado
que
essas
estatuetas
tinham
para
seus
contemporâneos? Como podemos interpretar seu contexto e ter certeza de que interpretamos seu simbolismo de modo correto?
Estatuetas assim são, por exemplo, encontradas em grande quantidade em sítios na Antiga Israel dos séculos oitavo e sétimo a.C. Foi uma época em que a adoração a Jeová já estava bem estabelecida como principal religião de Israel. É evidente que o achado dessas estatuetas não é motivo suficiente para defender a existência da disseminação do culto à Deusa-Mãe. Um exemplo semelhante que ilustra os limites das generalizações baseadas meramente em evidências arqueológicas é o das estatuas da Virgem Maria na Idade Média. Se uma arqueóloga do futuro encontrasse milhares dessas estátuas em vilas da Europa, estaria bastante enganada se concluísse, com base nesse achado, que uma divindade feminina era adorada ali. Por outro lado, essa arqueóloga sem dúvida teria encontrado também evidências da imagem de Cristo na cruz, o que poderia afetar suas conclusões.
Assim, a própria ausência de outras representações figurativas em quantidade comparável nos sítios neolíticos autoriza a conclusão de
que essas imagens tinham um significado especial, possivelmente religioso. Suas características comuns, sua ampla dispersão e execução convencionada sugerem, no mínimo, o uso como amuleto, talvez para ajudar as mulheres no momento do parto. Essas estatuetas aparecem por milhares de anos em uma ampla região.
Outra interpretação possível é a de que o achado dessas imagens em muitos sítios demonstra a existência constante de uma prática religiosa popular que coexistia ou contrastava com a religião estabelecida. Tal conclusão se justificaria pelas estatuetas de deusa nua em Israel no oitavo século a.C. e imagens da Virgem Maria na Europa medieval.
O argumento mais forte a favor do significado religioso das estatuetas femininas do Neolítico são as evidências históricas do quarto milênio em diante derivadas de mitos, rituais e histórias da criação. Nelas, a Deusa-Mãe é praticamente universal como imagem dominante nas histórias mais antigas. Isso nos permite interpretar o significado dos achados arqueológicos com certo grau de segurança. Ainda assim, existe o perigo de distorcermos o significado com o excesso de generalizações baseadas em evidências parciais. O assiriólogo A. L. Oppenheim alerta para esse perigo em relação à interpretação da religião mesopotâmica no segundo milênio a.C. Para esse período, há muito mais evidências disponíveis – arqueológicas, literárias, econômicas e políticas –, mas Oppenheim considera quase impossível para acadêmicos modernos reconstruir a visão de mundo e os valores religiosos daquela civilização. [ 347 ] No máximo, podemos dizer que uma profusão de estatuetas femininas com características sexuais enfatizando a maternidade encontradas no Neolítico correspondem a material mitológico e literário posterior, que celebra o poder da
deusa feminina sobre a fertilidade e a fecundidade. É provável que se trate de anterior adoração à Grande Deusa, mas não é certo.
Temos mais certeza das evidências arqueológicas do quarto milênio em diante. Estatuetas de deusas femininas aparecem em cenários mais elaborados e com atributos simbólicos distintos e recorrentes. A Deusa é mostrada entre pilares ou árvores, acompanhada de bodes, serpentes, pássaros. Ovos e símbolos de vegetação são associados a ela. Esses símbolos indicam que era adorada como fonte de fertilidade vegetal, animal e humana. Ela é representada pela deusa das serpentes minoica, com seios expostos. Era venerada na Suméria como Ninhursag e Inanna; na Babilônia, como Kubab e Ishtar; na Fenícia, como Astarte; em Canaã, como Anat; na Grécia, como Hécate-Ártemis. Sua frequente associação com a lua simbolizava seus poderes místicos sobre a natureza e as estações. O sistema de crenças manifestado na adoração à Grande Deusa era monístico e animista. Havia unidade entre a terra e as estrelas, humanos e natureza, nascimento e morte, tudo isso incorporado na Grande Deusa.
Os cultos à Grande Deusa eram baseados na crença de que é ela, em uma ou outra de suas manifestações, quem cria a vida; mas ela também era associada à morte. Era celebrada por sua virgindade e suas qualidades maternais. Descrevia-se a deusa Ishtar, por exemplo, como sexualmente livre, a protetora das prostitutas, padroeira das tabernas e, simultaneamente, a noiva virginal dos deuses (como nos mitos de Dumuzi). A sexualidade feminina era sagrada e honrada em seus rituais. Povos antigos não viam contradição nesses atributos contrastantes. A dualidade da Deusa representava a dualidade observável na natureza – dia e noite, nascimento e morte, luz e escuridão. Assim, nas primeiras fases da
adoração religiosa, a força feminina era reconhecida como aterradora, poderosa, transcendente.
A supremacia da Deusa também é expressa nos primeiros mitos de origem, que celebram a criação feminina que dá vida. Na mitologia egípcia, o oceano primordial, a deusa Nun, dá à luz o deus do sol Atum, que então cria o resto do universo. A deusa suméria Nammu cria por partenogênese o deus do céu An e a deusa da terra Ki. No mito babilônico, a deusa Tiamat, o mar primordial, e seu companheiro dão à luz deuses e deusas. Na mitologia grega, a deusa da terra Gaia, em um nascimento virginal, cria o céu, Urano.
A criação dos humanos também é atribuída a ela. Na versão assíria de um mito sumério anterior, a sábia Mami (também conhecida como Nintu), “a mãe-ventre, aquela que cria a humanidade”, molda a humanidade com argila, mas é o deus masculino Ea “que abriu o umbigo” das imagens, completando assim o processo de lhes dar vida. Em outra versão da mesma história, Mami, por insistência de Ea, concluiu ela mesma o processo criativo: “A Mãe-Ventre, criadora do destino/em pares ela os completou. [...] Mami forma a forma das pessoas”. [ 348 ]
Essas histórias da criação expressam conceitos oriundos de modos anteriores de adoração à fertilidade feminina. A força primordial na natureza é o mar, a água, o mistério do ovo que se abre para criar vida nova. Deusa das serpentes, deusa do mar, deusa da virgindade e deusa moldando humanos de argila – essa é a mulher que tem a resposta para o mistério.
Por outro lado, devemos observar aqui que, embora o ato criativo seja realizado pela Deusa, o deus masculino não raro é envolvido de maneira decisiva no início do processo de criação. O
reconhecimento da cooperação necessária do princípio feminino e
masculino no processo de criação parece se estabelecer com firmeza na mitologia suméria e acádia.
Com a domesticação de animais e o desenvolvimento da pecuária, a função do homem no processo de procriação tornou-se mais aparente e foi mais compreendida. [ 349 ] Em um estágio posterior de desenvolvimento, encontramos a Deusa-Mãe associada a um parceiro masculino, um filho ou irmão, que a ajuda nos ritos de fertilidade acasalando com ela. No mito e no ritual, o deus masculino é jovem, e pode ser necessário que ele morra para que o renascimento aconteça. Ainda é a Grande Deusa que cria a vida e controla a morte, mas agora há um reconhecimento mais pronunciado do papel do homem na procriação.
O Casamento Sagrado ( hieros gamos) e ritos anuais semelhantes, que eram muito celebrados em diversas sociedades no quarto e no terceiro milênios a.C., expressavam essas crenças. O ciclo anual das estações não podia começar antes de a Deusa acasalar com o jovem deus, e ele morrer e renascer. A sexualidade da Deusa é sagrada e concede as bênçãos de fertilidade à terra e às pessoas que a agradam cumprindo rituais. O ritual do Casamento Sagrado assumia várias formas e era bastante praticado na Mesopotâmia, na Síria, em Canaã e no Egeu. Um de seus muitos significados complexos é o de que o ritual transformava a abrangente fertilidade da Deusa-Mãe na fertilidade mais domesticada da “deusa da semente cultivada”. [ 350 ]
Nesses mitos do terceiro e do segundo milênios a.C. existem, também, evidências de que um novo conceito de criação passou a fazer parte do pensamento religioso: Nada existe a não ser que tenha um nome. O nome significa existência. Os deuses recebem sua existência por meio da nomeação, assim como os humanos. O
“Épico da Criação” ( Enuma Elish) babilônico começa da seguinte maneira:
O solo firme abaixo não foi chamado pelo nome,
Nada além do Apsu primordial, o procriador,
(e) Mummu-Tiamat, ela que criou todos,
Suas águas misturando-se como um único corpo. [...]
Quando nenhum dos deuses tiver sido criado,
Nem chamado por nenhum nome, o destino deles indeterminado –
Então é porque os deuses foram formados dentro deles. [ 351 ]
Aqui o princípio da fertilidade, de início situado na Deusa-Mãe, exige a “mistura” com o “procriador” masculino antes que o ciclo da vida possa começar. Mas, antes que possa ocorrer a criação, deve existir um conceito, algo “dentro deles”, que depois será “nomeado”
ou “chamado” à vida. De modo semelhante, em “A Epopeia de Gilgamesh”, a deusa Aruru é chamada pelos outros deuses, que lhe ordenam modelar um homem, uma duplicata de Gilgamesh:
Crie agora sua duplicata [...]
Quando Aruru ouviu isso,
Concebeu uma duplicata de Anu dentro dela.
Aruru lavou as mãos,
Pegou argila e a atirou na estepe,
[Na este]pe, ela criou o valente Enkidu. [ 352 ]
Em outro mito acadiano, o deus Enlil desenha a imagem de um dragão no céu, que depois ganha vida. Como analisa o assiriólogo Georges Contenau: “O deus da criação define a futura natureza de sua criação: quando ela toma o formato final em sua imaginação, e
ele dá a ela um nome, desenha então seu formato, de modo que a criação adquira vida quase completa”. [ 353 ]
A nomeação tem profundo significado no sistema de crenças da Antiga Mesopotâmia. O nome revela a essência de quem o carrega; ele também tem poder mágico. Esse conceito perdura ao longo de milênios em mitos e contos de fadas. A pessoa que consegue adivinhar o nome de outra adquire poder sobre ela, como no conto de fadas alemão “O Anão Saltador”. Uma pessoa recém-dotada de poder é renomeada. Assim, o deus Marduque, no mito da criação da Babilônia, recebe 50 nomes como símbolos de seu poder.
Discutiremos depois como esse poder de nomes e nomeações é usado no Livro do Gênesis. O importante a se observar aqui é que o conceito de criação mudou, em determinado período da história, deixando de ser meramente uma expressão da força mística da fertilidade feminina para se tornar um ato consciente de criação, envolvendo com frequência imagens de deuses de ambos os sexos.
Esse elemento de consciência, expresso “na ideia”, “no conceito”,
“no nome” do que será criado, pode ser o reflexo de uma consciência humana alterada em razão de mudanças significativas na sociedade.
O momento em que esses conceitos aparecem primeiro é quando a escrita foi “inventada”, e com ela a história. A manutenção de registros e a elaboração de sistemas de símbolos demonstram o poder da abstração. O nome registrado entra para a história e se torna imortal. Isso deve ter parecido mágica para os contemporâneos. A escrita, os registros, o pensamento matemático e a elaboração de vários sistemas de símbolos alteraram a percepção que as pessoas tinham de sua relação com o tempo e o
espaço. Não deve nos surpreender a descoberta de que esses mitos religiosos refletiam essa mudança de consciência.
No âmbito deste estudo, que se concentra no desenvolvimento e na institucionalização dos símbolos de gênero patriarcais, devemos observar que a simbolização da capacidade de criar, como no conceito da nomeação, simplifica o afastamento da Deusa-Mãe como único princípio da criação.
É um pensamento mais elevado, digamos assim, afastar-se dos fatos observáveis do senso comum da fertilidade feminina e conceituar uma criação simbólica, que pode se manifestar em “o nome”, “o conceito”. Não é um passo tão grande quanto o do conceito de “o espírito criativo” do universo. Mas é precisamente esse passo adiante na capacidade de fazer abstrações e criar símbolos que possam representar conceitos abstratos a condição prévia essencial para a mudança ao monoteísmo. Até que as pessoas pudessem imaginar um poder abstrato, invisível, incompreensível, que incorporasse tal “espírito criativo”, não conseguiriam reduzir seus numerosos deuses antropomórficos e contenciosos a Um Deus. O estágio de transição se expressa nos mitos da criação, que descrevem o “espírito criativo” como o deus do ar, o deus dos ventos, o deus do trovão, que traz à vida seres moldados de maneira mecânica com seu “sopro da vida”. Parece-me provável que as mudanças históricas na sociedade, com ênfase na liderança real e militar, tivessem feito os homens buscar um símbolo de deus masculino para incorporar o recém-percebido princípio da criação simbólica. Como veremos, o processo continua por mais de mil anos e culmina no Livro do Gênesis. O fato de, na crença egípcia, a criação ter sido incorporada pelo deus masculino Osíris já no terceiro milênio a.C. corrobora a tese de que as crenças
religiosas refletiam as condições da sociedade. Nesse caso, a primeira instituição de realeza poderosa, na qual os faraós reinaram como deuses encarnados, refletia-se no poder e domínio dos deuses masculinos nos mitos da criação.
A próxima grande mudança observável nos mitos da criação ocorre em contemporaneidade ao surgimento dos estados arcaicos governados por reis poderosos. Em algum momento a partir do terceiro milênio a.C., a figura da Deusa-Mãe é substituída na liderança do panteão. Ela dá espaço a um deus masculino, em geral o deus do vento e do ar ou o deus do trovão, que, cada vez mais, com o passar do tempo, se parece com um rei terreno do novo tipo.
Nesse processo de transformação, as antigas deusas da terra agora aparecem como filhas e esposas de deuses da vegetação. A mesopotâmica Damkina, Senhora da Terra, torna-se companheira de Ea ou Enki, deus das águas. Transformações semelhantes ocorrem com as Deusas-Mães – Ninlil, Nintu, Ninhursag, Aruru. A mais antiga descrição suméria do panteão mostra o deus do céu An
e a deusa da terra Ki comandando em harmonia os outros deuses. [
354 ] Dessa união, nasce o deus do ar Enlil. Seu principal local de
adoração é Nippur, uma cidade-Estado em constante conflito com Eridu, cuja divindade é Enki. Por volta de 2400 a.C., os principais deuses são listados em ordem de importância e culto, como An (céu), Enlil (ar), Ninhursag (rainha da montanha) e Enki (senhor da terra). Ninhursag pode representar a deusa da terra Ki, agora relegada a uma posição inferior. Em textos posteriores, em cerca de 2000 a.C., ela é mencionada por último, depois de Enki. O
especialista sobre o assunto Suméria, Samuel Noah Kramer, explica essa mudança na teogonia como resultado da crescente influência de sacerdotes, que estão associados a templos e cidades
específicos e seus soberanos. Esses sacerdotes passam a registrar os mitos antigos de maneira a servirem a fins políticos. Kramer observa na lista a ausência de Namu, a Deusa-Mãe, antes aclamada como criadora do universo e mãe dos deuses. Ele acredita que seus poderes tenham sido transferidos a seu filho Enki
“em uma aparente tentativa de justificar essa parte de plágio feita pelos sacerdotes”. [ 355 ]
A relação entre a mudança na sociedade e as mudanças na teogonia se torna mais explícita depois. No Enuma Elish, mencionado antes (escrito por volta de 1100 a.C.), o caos, na forma de Tiamat, que dá a vida, é confrontado por deuses primitivos rebeldes que desejam criar a ordem. Ocorre uma terrível batalha, na qual os deuses rebeldes são liderados por um jovem deus, que destrói fisicamente Tiamat e cria, de sua carcaça, a terra e os céus.
Os deuses depois também matam o marido de Tiamat e, de seu sangue, misturado com terra, criam a humanidade. É muito significativo que o jovem deus que mata Tiamat no épico seja Marduque, o deus adorado na cidade da Babilônia. Marduque surge primeiro durante a época de Hamurabi na Babilônia, que tornou sua cidade-Estado dominante na região da Mesopotâmia. Em Enuma Elish, escrito cerca de 600 anos depois, um pouco do antigo material mítico transforma-se em um grande sistema teológico. O
jovem deus Marduque agora é alçado ao poder supremo entre os deuses. Num processo semelhante, em um período no qual dominavam politicamente, os assírios contaram seu mito de criação
colocando o deus nacional Assur como parte central da história. [ 356
] Conforme avalia um acadêmico:
A ascensão de dois deuses nacionais, Marduque e Assur, a posições de poder supremo no mundo dos deuses [...] reflete a consequente cristalização da Mesopotâmia em dois Estados nacionais rivais, cada um sob uma monarquia absoluta. [...] O poder e a decisão estavam agora centralizados em Marduque e Assur, com os outros deuses atuando como seus agentes ou mediadores. [ 357 ]
Na mitologia cananeia, o jovem deus da tempestade Baal torna-se líder do panteão. Quando, em conflito com seu adversário Mot, o deus da morte, ele desce ao submundo, toda a vegetação na terra morre. A irmã e consorte de Baal, Anat, procura por ele em todo lugar. Ao encontrar seu corpo, ela o enterra e trava uma batalha violenta com Mot, na qual o mata. Retalha então o corpo de Mot, o tritura, o peneira, o mói em um moinho e o espalha pelos campos.
Esse tratamento simbólico de Mot, como se ele fosse grãos, ajuda a restaurar a fertilidade da terra. Quando Baal volta dos mortos para mais batalhas e posterior vitória sobre Mot, Anat, que no mito havia demonstrado todas as antigas qualidades da Deusa-Mãe –
ferocidade em batalha, força e o poder de conceder fertilidade –, passa a ser ofuscada por ele, que se torna o deus supremo e aquele que dá vida. [ 358 ]
Discutimos antes como os reis tomam o templo da divindade suprema. Assim, em Lagash, no período inicial de reinado, Lugalanda se autonomeia principal administrador do templo do deus Ningirsu e nomeia sua esposa Baranamtarra como principal administradora do templo da deusa Bau. Em período posterior, como no reinado de Hamurabi, quando a realeza já está bem estabelecida e possui um vasto domínio, o rei incorpora um pouco da liderança divina. É como se existisse um fluxo contínuo de poder, sacralidade e energia entre deus e rei. Não surpreende que, no
processo, a Deusa-Mãe não apenas perca sua supremacia, mas que em geral seja domesticada e transformada na esposa do deus supremo. Ainda assim, ao mesmo tempo, de modo misterioso, ela se separa e adquire uma nova vida e uma nova identidade com diversas manifestações, que continuam a ter força na religião popular. Discutiremos esse processo mais adiante.
A mudança de posição da Deusa-Mãe, seu destronamento, ocorre em muitas culturas e em momentos diferentes, mas costuma estar associada aos mesmos processos históricos. Em Elam, a Deusa-Mãe reina suprema no terceiro milênio a.C., mas, posteriormente, se torna secundária em importância perante seu consorte Humban. A mesma evolução ocorre em épocas diferentes na Anatólia, em Creta e na Grécia. No Egito, onde antes o Deus masculino impera, também podemos encontrar vestígios de predominância da Deusa anterior. Ísis, como a “mulher do trono”, personificava o poderio misterioso da realeza. Como E. O. James assinala: “Como tal, ela era a fonte de vitalidade antes de se tornar o protótipo da mãe que dá vida e da esposa fiel”. [ 359 ]
Observar em mais detalhes a sociedade hitita e seu desenvolvimento pode resultar em um bom estudo de caso para a transição das relações matrilineares de parentesco e sucessão real para as relações patrilineares de parentesco e sucessão, bem como seus reflexos na religião.
A sociedade hitita prosperou entre 1700-1190 a.C., na Antiga Anatólia. Ela combinava elementos da cultura hatita mais antiga com outros dos povos indo-europeus, que dominaram a região provavelmente no fim do terceiro milênio a.C. O governo hatita inicial era baseado em um sistema no qual o direito à sucessão estava na tawananna, a irmã do príncipe. A família real hatita
praticava casamentos entre irmão e irmã, semelhante ao sistema de parentesco das famílias reais no Egito. Um soberano se casava com sua irmã, que, como tawananna, era uma sacerdotisa com poder político e econômico considerável, por exemplo, tendo o direito de coletar impostos das cidades. Seu filho menino herdava o direito à sucessão, não porque seu pai era o rei, mas porque o direito à sucessão estava com a tawananna. O posto era hereditário, para que a filha da tawananna, que herdava seu posto, herdasse também uma posição de poder importante, assim como seu irmão. Depois, quando o casamento entre irmão e irmã foi proibido, a tawananna permaneceu como sacerdotisa e com poder de sucessão – o que significava que o filho de seu irmão o sucederia no trono.
No início do segundo milênio, o primeiro rei hitita poderoso, Hatusil I, não apenas desafiou a tradicional regra de sucessão, indicando seu neto em vez do filho como sucessor, o que o levou a um conflito com a tia, mas também aboliu o posto de tawananna, proclamando-se sumo sacerdote. Além disso, passou a nomear princesas reais como sacerdotisas nos santuários da Deusa. [ 360 ] Vimos antes como esse mesmo processo ocorreu na Suméria durante a formação dos estados arcaicos.
Mas o édito de Hatusil I não aboliu a forte tradição matrilinear, e a regra de sucessão, segundo a qual o irmão da tawananna seria o rei, perdurou. O neto de Hatusil continuou a expansão hitita invadindo a Babilônia, mas foi assassinado, e o reino, contaminado por conflitos familiares internos e assassinatos por causa da sucessão. Isso coincidiu com a invasão dos hurritas e a conquista da maior parte da Síria.
Telepinu, um genro real que se tornou rei, provavelmente de acordo com o antigo costume matrilinear de aceitar que um homem
se casasse para herdar a sucessão real na ausência de um herdeiro, tentou determinar a sucessão patriarcal em seu édito, por volta de 1525 a.C. O édito especificava que, se não existissem filhos disponíveis para a sucessão, o marido da primeira filha deveria se tornar rei. O édito também descrevia o período anterior de derramamento de sangue, que parece ter ocorrido em razão da transição de um sistema de parentesco para outro. Por certo é a prova de força da tradição de sucessão matrilinear. [ 361 ]
A tradição foi forte o bastante para durar mais 150 anos, durante os quais uma nova dinastia chegou ao poder. Refletiu-se na disputa entre o rei Tudalia e sua irmã, que ele acusava de ter usado bruxaria. A disputa foi resolvida com um acordo, pelo qual o filho do rei o sucederia no trono, enquanto a filha do rei se tornaria tawananna e exerceria o ofício de sacerdotisa da deusa do Sol. Por esse acordo, o direito à sucessão era discretamente passado ao rei.
Foi a última vez na história hitita em que um par irmão-irmã compartilhou poder temporal e religioso. Para se ter uma ideia de como essas lutas internas enfraqueceram o governo, basta considerar o fato de que os inimigos do país quase o levaram à extinção.
Em 1380 a.C., um rei poderoso, Supiluliuma I, assumiu o trono no período neo-hitita de construção do império, e por quase cem anos faria o reino hitita rivalizar com o Egito e a Babilônia em grandeza.
Ele restabeleceu a hegemonia hitita sobre a Síria, conquistando os hurritas e estendendo seu domínio a Damasco. É muito provável que seu sucesso em por fim abolir o posto de tawananna como personificação do direito à sucessão matrilinear esteja totalmente relacionado a seu poderoso reinado e sucesso como construtor do império. Supiluliuma I transformou o posto de tawananna colocando
nele sua rainha, mantendo assim o formato enquanto mudava o conteúdo. Desde então, os direitos à sucessão foram investidos ao rei, cuja esposa – não a irmã nem a filha – era colocada pelo poder dele no posto de tawananna e sacerdotisa, duas posições que se despiram de seus principais e hereditários poderes.
Supiluliuma I pacificou regiões conquistadas colocando nelas reis figurativos, que se tornaram seus súditos e se casaram com suas filhas. Vimos essa prática ocorrer por motivos dinásticos semelhantes na Suméria e em Mari. É uma prática que muda de maneira significativa a relação das mulheres com o poder político, transformando-as em instrumentos de decisões masculinas e tornando o poder delas dependente de seus serviços sexuais e reprodutivos em prol de um homem específico.
O filho de Supiluliuma I e seu neto seguiram seus passos e estenderam o poder hitita para o Egeu e a Síria. Mais uma vez, após a morte do neto, houve uma batalha pela sucessão, que terminou com o trono usurpado pelo irmão do rei, Hatusil III. Esse rei, que assinou tratados de amizade e assistência mútua com o Egito e a Babilônia, fez o reino prosperar até seu ápice. Promoveu a esposa, Puduhepa, a cossoberana. É significativo que mesmo nessa época a antiga tradição de sucessão fosse tão forte, que o rei usurpador tenha achado necessário escrever uma “Justificativa” na qual ele agradecia sua deusa padroeira, Ishtar, por inspirá-lo a ascender ao poder e se casar com sua esposa Puduhepa. Assim, a forte tradição de sucessão matrilinear e poder político por mulheres foi transformada, após 300 anos de luta, em um posto de uma poderosa rainha que atuava como substituta do marido em uma sociedade patriarcal. [ 362 ]
A potência hitita durou mais cinquenta anos após a morte de Hatusil III e acabou por volta de 1200 a.C. com as invasões dos
“povos do mar”, seguidas alguns séculos depois pela conquista assíria de toda a região. O que permaneceu do Império Hitita foi o idioma, a forte tradição artística e os hieróglifos. Para os nossos propósitos, porém, também restou a história da transformação do panteão de deuses e deusas, que coincidiu com os
desenvolvimentos políticos apresentados antes.
Carol F. Justus, que estudou a transformação do panteão hitita por meio da linguística comparativa, observou que as principais imagens de deuses passaram por uma mudança de sexo nesse processo, que ela interpreta como símbolo das mudanças políticas e sociais dos dois sexos na sociedade hitita. [ 363 ]
Antes da conquista hitita, os habitantes indo-europeus nativos adoravam um panteão de deuses e deusas liderados por um deus do sol ( sawel) e por um deus da tempestade ( dyew). Ambas as figuras manifestam-se de diferentes formas em várias religiões antigas. O deus do sol é caracterizado em toda parte como “de ampla visão”, abrangente. Sua carruagem percorre o céu puxada por cavalos. O deus da tempestade (sânscrito, Dyaus Pita; grego, Zeus, Homérico, Zeu(s) Pater; latim, Júpiter) é caracterizado como
“brilhante”, pai, procriador de homens, progenitor. Ele é associado ao tempo e ao relâmpago. Habitantes hatitas da região também adoravam uma deusa do Sol, Estan, e um deus da tempestade, Taru.
Os hititas, sintetizando elementos de ambas as culturas, adoravam um deus do Sol, Istanu, que era uma versão revisada da deusa do Sol Estam, agora transformada em homem. Esse deus masculino era, no Império Neo-Hitita, adorado como “pai” e “rei”. Em
hinos que o celebram, credita-se a ele o estabelecimento do costume e da lei da terra, sendo ele mencionado como “pai e mãe dos oprimidos”. Seu epíteto pode muito bem ser uma alusão à origem dele, de uma divindade feminina e uma masculina. Seu reinado divino é comparável ao do sumério Marduque e do assírio Assur, divindades que ascendem à realeza celestial com o estabelecimento de um reinado vigoroso na terra.
Em um período hitita posterior, a deusa do Sol Arinna é adorada como “Rainha”. Ela se assemelha à antiga deusa Estan, associada ao submundo, mas seus símbolos de culto associam-na ao sol. De maneira significativa, a rainha Puduhepa, cossoberana com o marido quando o regime patriarcal foi institucionalizado com firmeza, referia-se a essa deusa como “Rainha do Céu e da Terra”. Em uma época em que a tawananna era a esposa do rei e não mais incorporava a linhagem real de sucessão, essa mudança na função da deusa feminina, então aclamada como padroeira e protetora do rei e da rainha, poderia servir para dar legitimidade celestial a uma inversão terrena de poder. Não nos surpreenderá descobrir que, em um período posterior, a deusa do Sol Arinna se torna Hepat, a consorte do deus do Sol, que, enquanto isso, é destronado pelo deus da tempestade Tesup. A evolução aqui é semelhante ao padrão que observamos em outros lugares: o deus do Sol sendo substituído pelo deus da Tempestade.
Carol Justus define a importância dessas mudanças da seguinte maneira:
O rei hitita não controlava de fato a terra hatita até assumir a autoridade religiosa da tawananna, bem como o direito primário do próprio filho à sucessão. [...] Tentativas de incorporar esferas femininas de autoridade foram progressivas. [...] Mudanças no panteão da deusa do Sol Estan, a Rainha, para
o deus do Sol Istanu, o Rei, e deste para o Rei do Céu, o deus da tempestade,
refletem a absorção gradual de direitos femininos pela estrutura patriarcal. [ 364
O que sabemos das práticas religiosas no Antigo Oriente Próximo chega até nós em forma de documentos literários e religiosos preservados em tábuas de argila. Estes são predominantemente o produto do trabalho de escribas sacerdotais associados a vários templos e palácios. Mesmo que desconsideremos distorções ideológicas e alterações em textos básicos por interesse de uma divindade ou personalidade real específica, devemos entender que o que analisamos aqui são os mitos e textos propagados e aprovados pela elite da sociedade. As versões registradas de mitos e teogonias podem ter gozado de apoio popular generalizado, mas não podemos ter certeza disso. A mudança da Deusa-Mãe para o deus do trovão pode ser mais prescritiva do que descritiva. Pode nos contar mais sobre em que a classe alta de autoridades reais, burocratas e guerreiros queria que a população acreditasse do que, de fato, em que a população acreditava.
Mesmo nos séculos nos quais estudamos mudanças em direção a figuras de deuses patriarcais, o culto a certas deusas prosperou e se difundiu ainda mais. A Grande Deusa pode ter sido rebaixada no panteão, mas continuou a ser adorada em suas múltiplas manifestações. Todos os assiriólogos comprovam sua enorme popularidade e a persistência de seu culto, em vários aspectos, em todas as principais cidades do Oriente Próximo, por quase dois mil anos. As antigas Deusas-Mães absorveram as características de deusas semelhantes em outras regiões, conforme o culto delas era difundido em consequência das conquistas e ocupações territoriais.
A egípcia Ísis é um exemplo da difusão e do aspecto sintetizador da adoração à Grande Deusa. Assim como a “mulher do trono” no início, ela havia incorporado a realeza sagrada e o conhecimento dos mistérios; depois se tornou o protótipo da mãe e esposa fiel.
Ensinou a seu irmão-marido Osíris os segredos da agricultura e restaurou seu corpo desmembrado à vida. No Período Helenístico, ela foi adorada como a Magna Mater do Sudoeste Asiático e do mundo greco-romano.
Em outros exemplos, a própria Grande Deusa foi transformada.
No período inicial, seus atributos eram abrangentes – a sexualidade conectada com o nascimento, a morte e o renascimento; seu poder para o bem e para o mal, para a vida e a morte; seus aspectos de mãe, guerreira, protetora e intercessora perante o deus masculino dominante. Nos períodos finais, suas várias qualidades foram divididas e incorporadas por deusas diferentes. Sua característica de beligerância diminuiu, provavelmente tendo sido relegada ao deus masculino, e suas qualidades como curandeira estavam cada vez mais proeminentes. Isso parece refletir certa mudança em conceitos de gênero nas sociedades onde ela era adorada.
Seu aspecto erótico foi enfatizado na deusa grega Afrodite e na deusa romana Vênus. Sua qualidade de curandeira e protetora das mulheres no momento do parto foi incorporado pela deusa Mylitta na Assíria e Ártemis, Ilitia e Hera na Grécia. O culto a Aserá em Canaã, que coexistiu durante séculos com o culto a Jeová e é com frequência condenado no Antigo Testamento, pode ter ocorrido por causa da associação da deusa com a proteção durante o parto.
Discutir suas muitas propriedades e formas nas quais é adorada exigiria um capítulo à parte. [ 365 ] Esculturas com sua imagem e seus símbolos são muito comuns, provando sua popularidade.
Muitas delas foram encontradas não apenas em templos, mas também em casas, indicando a posição importante de sua adoração na religião popular. É justificável considerarmos a extraordinária persistência de cultos à fertilidade e a deusas como uma expressão da resistência feminina à predominância de deuses masculinos.
Ainda não temos evidências sólidas para comprovar essa especulação, mas é difícil explicar tal persistência de alguma outra maneira.
No segundo milênio a.C., homens e mulheres tinham a mesma relação com as forças misteriosas e aterradoras representadas por deuses e deusas. As distinções de gênero ainda não eram usadas para explicar as causas do mal e o problema da morte. A causa da dor e do sofrimento humano era a tendência ao pecado de homens e mulheres e a negligência em relação aos deveres perante os deuses. E o reino da morte, na crença mesopotâmica, podia ou não ser governado por uma força sobrenatural feminina. As grandes questões filosóficas “quem cria a vida humana?” e “quem fala com Deus?” ainda podiam ser respondidas: seres humanos, homens e mulheres.
Independentemente de quanto o poder reprodutivo e sexual da mulher fosse degradado e transformado em mercadoria na vida real, a igualdade essencial não poderia ser banida do pensamento nem do sentimento enquanto as deusas vivessem e enquanto acreditassem que elas regiam a vida humana. As mulheres devem ter encontrado a própria imagem nas deusas, assim como os homens a haviam encontrado nos deuses masculinos. Antes dos deuses, havia uma igualdade observável e essencial entre os seres humanos que deve ter sido irradiada para a vida cotidiana. O poder e o mistério da sacerdotisa eram tão grandes quanto os do
sacerdote. Enquanto as mulheres fizessem a mediação entre o humano e o sobrenatural, poderiam realizar funções e papéis diferentes dos dos homens na sociedade, mas a igualdade essencial como seres humanos permanecia incontestável.
OITO
OS PATRIARCAS
A
da Bíblia muitas de suas principais
metáforas e definições de gênero e moralidade. Antes de considerarmos esses principais símbolos, que definiram e moldaram tanto da nossa herança cultural, precisamos entender um pouco a cultura da qual veio a Bíblia e precisamos avaliar, mesmo que de modo resumido, as evidências históricas dentro da Bíblia em relação à posição das mulheres na sociedade hebraica. Um estudo do Antigo Testamento em sua totalidade sairia muito do escopo desta obra. Escolhi concentrar-me no Livro do Gênesis, porque vieram dele os principais e mais significativos símbolos referentes ao gênero.
O uso da Bíblia como documento histórico tem sólida base acadêmica, o que estabeleceu, nos últimos cem anos, uma correlação próxima entre as descobertas arqueológicas das culturas do Antigo Oriente Próximo e a narrativa bíblica. O Livro do Gênesis combina composições em poesia e prosa, algumas de caráter mítico, algumas de caráter folclórico. Já é dado como certo que materiais culturais sumério-babilônicos, cananeus e egípcios foram adaptados e transformados por autores e redatores da Bíblia, e que
práticas, leis e costumes contemporâneos de povos vizinhos refletiram-se nessa narrativa. Ao usar o texto bíblico como fonte de análise histórica, deve-se estar ciente da complexidade de sua autoria, objetivos e fontes.
A tradição mais antiga de atribuir a autoria do Livro do Gênesis a Moisés foi substituída, com base em maciças evidências internas estabelecidas pela crítica da versão moderna, pela aceitação da
“hipótese documentária”. Considera-se que a Bíblia, acreditando-se ou não em sua inspiração divina, foi obra de muitas mãos. A composição do Livro do Gênesis se estendeu por um período de cerca de 400 anos, do décimo século a.C. ao quinto. Aceita-se agora, de modo geral, que existem três principais tradições de autoria e que muitas das fontes representam uma tradição bem mais antiga, que os redatores reinterpretaram e incorporaram à narrativa.
A composição do material, que por séculos foi transmitido oralmente, e a criação de uma história coerente que levasse à monarquia de Davi começaram após a divisão do reino. A narrativa conhecida como J (pelo uso de “Jeová” e por causa de sua origem judaica), pelo que se costuma acreditar, foi composta no reino do sul de Judá no décimo século a.C. O segundo autor, chamado E, de Elohista, por causa da forma como ele se refere à divindade e porque acredita-se que represente a tradição de Efraim, provavelmente no estado do norte de Israel, um pouco depois. Em terceiro, há a tradição P, que inclui e reinterpreta as narrativas J e E.
Apesar da considerável polêmica sobre a datação da versão P, acadêmicos concordam que não se trata apenas de um indivíduo, mas de uma escola de redatores sacerdotais em Jerusalém que podem ter trabalhado durante centenas de anos e concluído a obra apenas no sétimo século a.C. O Livro de Deuteronômio, um produto
do sétimo século a.C., é considerado uma criação à parte. A fusão final dos vários elementos no Pentateuco, os Cinco Livros de Moisés, ocorreu por volta de 450 a.C. sob a direção de Esdras e Neemias, quando o reino de Judá estava sob o domínio persa.
Representou a canonização da Lei Judaica e a realização suprema do pensamento religioso judaico no período arcaico. [ 366 ]
Para que se entenda o significado da vasta transformação cultural representada pela criação do monoteísmo judaico, precisamos ter em mente as condições sociais refletidas no Livro do Gênesis.
As tribos patriarcais do primeiro período descrito em Gênesis viviam, assim como seus ancestrais, como nômades ou seminômades no deserto. Criavam ovelhas, cabras e gado e se dedicavam à agricultura sazonal. Em vários momentos, também viveram nas cercanias das cidades, sob a proteção dos habitantes, mas mantendo os próprios costumes separados dos dos anfitriões.
A coesão e a sobrevivência deles dependiam de fortes laços tribais.
A menor unidade era a família patriarcal, composta de um homem, sua esposa, seus filhos com suas esposas e filhos, suas filhas solteiras e os servos. Diversas famílias formavam um clã, um mishpahah; eles se ajudavam economicamente e se encontravam para festividades religiosas. Um grupo de clãs, reivindicando um antepassado comum e reconhecendo um líder também comum, unia-se em uma tribo. As tribos reconheciam um laço de sangue que impunha sobre elas a responsabilidade da vingança de sangue; ou seja, se um membro da tribo fosse ferido, seria vingado com a morte de seu agressor ou de um membro da família do agressor. Entre os nômades, na ausência de um sistema judicial comum, essa forma de retribuição protegia os direitos e a integridade das tribos.
Membros das tribos tinham a obrigação de proteger e cuidar dos membros mais fracos. Embora alguns membros da tribo tivessem mais gado do que outros, não havia grandes diferenças econômicas entre eles. Entre os nômades do deserto, um indivíduo solitário não consegue sobreviver; assim, a hospitalidade para com desconhecidos era uma regra básica e sagrada. [ 367 ]
A maioria dos acadêmicos atribui o período patriarcal da história bíblica à primeira metade do segundo milênio a.C. Há evidências históricas úteis disponíveis para as condições prevalentes entre as tribos semitas do Oeste nos documentos dos arquivos reais de Mari, datados de cerca de 1800 a.C., que esclarecem as reais condições da terra natal de Abraão, Harã. Documentos da cidade de Nuzi também ofereceram aos acadêmicos muitas informações sobre a vida das famílias, o que lhes permitiu entender e interpretar melhor os costumes refletidos em Gênesis. [ 368 ]
Foi em Harã que Abraão teve seu primeiro encontro com Deus, que fez uma aliança com ele. É essa aliança que distinguirá os descendentes de Abrão como povo escolhido de Deus. Discutirei sua importância simbólica no próximo capítulo. Por ora, devemos observar que esse evento mítico marca o início da experiência religiosa judaica e oferece a ideia motivadora que permitirá a sobrevivência do povo pelos quatro mil anos seguintes, apesar da diáspora e das frequentes perseguições, na ausência de uma terra natal.
Os acadêmicos costumam considerar Moisés o fundador do monoteísmo judaico e o Decálogo, sua lei básica. Nos cerca de 400
anos entre Abraão e Moisés, as tribos hebraicas, embora estivessem comprometidas a adorar Jeová como seu único deus, continuaram adorando ídolos na forma de deuses domésticos. O
único ritual que os unia era a circuncisão masculina e a proibição de sacrifício humano (conforme incorporado na história de Isaac).
A história de José e seus irmãos fala sobre a migração ao Egito de hebreus atingidos pela escassez. Lá eles viveram de modo pacífico, até um novo faraó, que lhes era hostil, escravizá-los. O Êxodo do Egito, que a história bíblica descreve com tanta vividez, é datado por evidências arqueológicas como tendo ocorrido no reinado de Ramsés II (por volta de 1290-24 a.C.). Acompanhando o Êxodo, a história bíblica conta como Moisés guia as pessoas pelo deserto durante quarenta anos e como, no Monte Sinai, recebe as Tábuas da Lei de Jeová. A revelação que Moisés faz da lei ao povo e sua destruição do bezerro de ouro, símbolo de idolatria, são pontos cruciais na narrativa. A aliança de Jeová com Moisés confirma e reforça todas as alianças anteriores e transforma Israel em uma entidade unida por uma crença e uma lei comuns. Moisés morre sem ver a terra prometida; é seu sucessor indicado, Josué, quem conduz os israelitas até lá. Acadêmicos acreditam que a conquista de Canaã por Josué foi concluída até 1250 a.C., o que também marca o fim da Idade do Bronze e o início da Idade do Ferro na Palestina. [ 369 ]
As tribos seminômades que conquistaram Canaã passaram a viver em uma região que havia sido pouco explorada, em razão do solo pobre e da pouca água. Conseguiram superar esses obstáculos ambientais com inovações tecnológicas que utilizavam ferro – o armazenamento de água em cisternas enfileiradas, o cultivo mais profundo com ferramentas com ponta de ferro e o desenvolvimento do terraceamento para preservar água. Eles também devem ter passado por grandes catástrofes trazidas pela guerra e por várias epidemias, descritas na Bíblia, como pragas ou pestilência. A
pressão da necessidade do trabalho agrícola para o estabelecimento em um ambiente deserto, combinada à simultânea perda de população em razão de guerras e crise epidêmica no próprio período em que surgiram os princípios rudimentares do pensamento religioso judaico, pode explicar a ênfase bíblica na família e no papel de procriação da mulher. Nessa crise demográfica, é provável que as mulheres concordassem com uma divisão de trabalho que priorizasse o papel materno. [ 370 ]
O assentamento permanente em vilas e pequenas cidades trouxe mudanças no conceito de liderança, que mudou da tribo para o clã.
No período dos Juízes (por volta de 1125-1020 a.C.), as tribos ora agiam em conjunto, ora de forma independente, mas as ligações intertribais costumavam ser fracas. A autoridade era controlada por anciãos, dentre os quais juízes eram escolhidos durante épocas de crise. Nesse período, quando a consciência nacional ainda não existia em essência, uma tradição comum religiosa e cultural formava o vínculo entre as tribos.
Descreve-se o período de conflito entre tribos israelitas e cananeus, que ocorreu enquanto toda a região estava sob domínio filisteu, como um dos mais antigos segmentos do Antigo Testamento, o Cântico de Débora (Juízes 4-5). É um dos cinco exemplos da narrativa em que uma mulher aparece em posição de liderança e papel heroico. [ 371 ] Débora é descrita como uma profetisa e juíza que inspira Baraque a reunir tropas em resistência aos cananeus, liderados por Sísera. Uma passagem de certa forma excepcional na literatura bíblica mostra que ela assume de fato a liderança sobre os homens:
E Baraque lhe disse: “Se fores comigo, então eu irei; mas, se não fores comigo, eu não irei”. E ela disse: “Por certo eu irei, porém a jornada que fizeres não será tua honra, pois o Senhor dará Sísera às mãos de uma mulher”. E Débora ergueu-se e foi com Baraque a Quedes [Juízes 4:8-9].
A profecia de Débora se realiza quando Sísera é morta por Jael, a esposa de Héber, que o atrai para sua tenda oferecendo hospitalidade e, enquanto ele dorme, crava uma estaca da barraca em sua têmpora com um martelo. Por esse ato heroico, ela é homenageada no Cântico de Débora com as seguintes palavras:
“Que Jael seja a mais abençoada das mulheres, / A esposa de Héber, o queneu, / Seja ela a mais abençoada das mulheres das tendas” (Juízes 5:24). Embora seja evidente que o milagre é do Senhor, que permite a uma mulher matar o guerreiro, a passagem é notável em sua celebração da força feminina, tanto moral (Débora) quanto física (Jael).
A vitória israelense e a necessidade de união contra os filisteus fortaleceram as tendências a uma liderança vigorosa entre as doze tribos. A primeira oferta de reinado foi feita a Gideão, após sua vitória sobre os midianitas, mas ele a recusou (por volta de 1110
a.C.). Depois, as tribos, como resultado das sucessivas derrotas aos filisteus, convenceram-se da necessidade de união e fizeram de Saul o rei.
Saul uniu as tribos, formou um exército permanente e derrotou os filisteus. De forma muito semelhante aos líderes militares da Mesopotâmia que ascenderam à realeza, ele nomeou membros da própria família para posições importantes e esperava tornar seu posto hereditário. Mas ele e os filhos morreram em batalha, e Saul foi sucedido por Davi, que antes tinha sido feito rei em sua tribo de Judá.
Foi o rei Davi (por volta de 1004-965 a.C.) quem consolidou as tribos em um Estado nacional e conquistou vastos territórios entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho. Assim como outros reis arcaicos, Davi desenvolveu a burocracia e centralizou a estrutura administrativa. Também adquiriu terra e palácios reais, realizou um censo populacional e tornou Jerusalém a capital. Ao transportar a Arca, o centro da vida religiosa israelita, para Jerusalém, ele também transformou a cidade no centro da vida religiosa israelita.
Após uma amarga luta pela sucessão, Davi foi sucedido por Salomão, que continuou a fortalecer e desenvolver a monarquia. Ele estabeleceu diversos acordos e casamentos dinásticos com vizinhos antes hostis, adquirindo assim um grande harém. Criou um grupo de mercadores reais, equipou-os com uma frota e os enviou em missões comerciais ao longo de um vasto território. Durante seu reinado, a monarquia se desenvolveu cultural e economicamente, mas a taxação pesada e a crescente estratificação social causaram inquietação social e, por fim, inúmeras rebeliões. Após a morte de Salomão, a monarquia se dividiu em dois reinos: Judá e Israel. [ 372 ]
A dupla monarquia estava sob constante ameaça de seus vizinhos maiores. O reino de Israel durou pouco mais de duzentos anos e acabou, após prolongado conflito, quando os assírios, liderados por Sargão II, tomaram sua capital, Samaria, em 722 a.C. e exilaram toda a população. Outros eventos importantes em termos de desenvolvimento religioso foram a crescente expansão do culto a Baal e Aserá durante o reinado do rei Acabe e sua esposa estrangeira Jezebel, e a reação que se seguiu. Inspirada pelos profetas Elias e Eliseu, a adoração apenas a Jeová foi restabelecida depois de um golpe político e do assassinato de 400 sacerdotes de Baal em 852 a.C. Reavivamentos religiosos posteriores pelos
profetas Oseias, Amós e Isaías introduziram ao culto a Jeová a revolucionária ideia de intolerância em relação a outros deuses e cultos. O culto ao touro foi proibido, e o conceito de fertilidade fixou-se mais em Jeová pela metáfora apresentada por Oseias, que mudou a ideia de aliança, transformando-a no casamento de Jeová com Israel, a noiva. Os profetas, em sua pregação inspirada, igualaram a pecaminosidade de Israel a “perversão”. Assim as metáforas sexuais patriarcais foram incorporadas com firmeza ao pensamento religioso. [ 373 ]
O reino de Judá, continuando a linhagem dinástica de Davi, foi sucessivamente invadido e combateu egípcios, fenícios, filisteus, moabitas, assírios e, em 586 a.C., foi enfim dominado quando os babilônicos destruíram Jerusalém, demoliram o templo e exilaram a população.
A queda de Jerusalém marcou o fim das instituições políticas de Israel. A partir daí, a sobrevivência de Israel dependia de sua adesão à religião de Jeová sob as mais adversas circunstâncias de exílio, diáspora e assimilação. Isso foi possível graças à canonização do ensino judaico no Pentateuco, realizada pelo profeta Esdras. O aspecto revolucionário do monoteísmo judaico era sua absoluta fé no Deus único, invisível e inefável; a rejeição de rituais como prova de santidade e a exigência, em vez disso, da adesão e prática de valores éticos. A grande inovação da sinagoga como local de reunião religiosa e leitura da Escritura, os livros sagrados, por qualquer grupo de fiéis, em vez de prática de culto monopolizada por um grupo de sacerdotes, tornou a religião judaica móvel, exportável, flexível e comum. Foram essas características que tornaram possível a sobrevivência judaica.
As mesmas condições históricas que criaram a possibilidade desse avanço cultural e conceitual também influenciaram a maneira como eram estruturados conceitos e ideias patriarcais no monoteísmo judaico. Passaremos agora a examinar o gênero conforme definido na prática e no pensamento israelita.
A
C
viveram em uma sociedade pré-Estado; o
período de formação do Estado em Israel não ocorreu até cerca de 1050 a.C. Se o mesmo padrão de desenvolvimento ocorresse na sociedade palestina como resultado da formação do Estado, segundo já discutimos antes em relação à sociedade
mesopotâmica, poderíamos esperar por uma regulamentação mais rigorosa da sexualidade feminina e a crescente exclusão de mulheres das atividades públicas conforme o Estado se tornasse mais poderoso. Evidências históricas parecem confirmar esse padrão, que aqui podemos discutir apenas de forma resumida.
As histórias dos patriarcas no Gênesis oferecem certos indícios de transição de uma organização familiar matrilocal e matrilinear para patrilocal e patrilinear em algumas tribos (por exemplo, os casamentos de Lea e Raquel. A referência a um homem que deixa os pais e é leal à esposa em Gênesis 2:24 pode ser interpretada assim também). Os sete anos de trabalho de Jacó para Labão em troca de cada uma de suas filhas correspondia à prática de casamento matrilocal. O assiriólogo Koschaker confirmou a existência de uma forma de casamento em épocas remotas da Mesopotâmia no qual a esposa continuava na casa dos pais (ou, com mais frequência, na tenda) e o marido morava com ela como visitante permanente ou ocasional. Na narrativa bíblica, o casamento matrilocal é chamado casamento beena. Ele permitia à
mulher mais autonomia e dava-lhe o direito de se divorciar, o que o casamento patrilocal, conhecido como casamento ba’al, aboliu.
Koschaker observou que essa forma de casamento foi substituída pelo casamento patriarcal. [ 374 ]
A história do galanteio de Jacó e de sua fuga da casa de Labão tem sido interpretada como um indício da transição de matrilocalidade para patrilocalidade. Mesmo antes de ele chegar à casa de Labão, Jacó havia se comprometido a voltar para a casa do pai. Ao cumprir a promessa, precisou superar a resistência e a ilusão de Labão, que fica mais compreensível quando entendemos que, na sociedade matrilocal, seria direito de Labão, e ele o tomaria por certo, exigir que Jacó ficasse na casa da esposa. [ 375 ]
O roubo dos teraphim perpetrado por Raquel também pode ser visto sob essa óptica. Tal passagem intrigou acadêmicos da Bíblia por muito tempo. Speiser interpreta os teraphim como “deuses domésticos” e elucida a passagem apontando que, de acordo com documentos de Nuzi, que, segundo se descobriu, refletem os costumes sociais de Harã (local de residência de Labão), a posse de imagens de deuses domésticos significava direito a uma propriedade. Então, Raquel, acreditando que seu pai negaria a Jacó uma parte de sua propriedade, levou os teraphim. [ 376 ] A interpretação de Speiser não é incompatível com a ideia de que, ao transferir os teraphim da casa do pai para a casa do marido, a ação de Raquel tenha simbolizado a mudança de matrilocalidade para patrilocalidade.
Não há dúvidas de que a estrutura familiar predominante na narrativa bíblica seja a família patriarcal. Acadêmicos formaram um retrato bem abrangente da estrutura familiar e social da sociedade hebraica que lembra bastante os vizinhos mesopotâmicos de Israel.
No período inicial, o patriarca tinha absoluta autoridade sobre os membros de sua família. A esposa chamava o marido de ba’al ou
“amo”; ele era de forma semelhante chamado de o ba’al de sua casa ou campo. No Decálogo, a esposa encontra-se elencada entre os bens de um homem, junto com seus servos, boi e jumento (Êxodo 20:17). [ 377 ] Nesse período, o pai também podia vender a filha como escrava ou prostituta, o que depois foi proibido. Quando foi instaurada a monarquia, o poder de vida e morte do pai sobre a família já não era ilimitado e irrestrito. Quanto a isso, observamos uma melhora na posição das filhas em relação ao primeiro período.
A grande importância do clã ( mishpahah) foi reforçada por acordos de propriedade. Após o período de assentamento, a propriedade familiar era a maneira predominante de se possuir terras. A propriedade de uma família definia-se por limites precisos e incluía, em geral, um túmulo ancestral. A responsabilidade pela manutenção e preservação desse patrimônio era do chefe patriarcal da família. A terra pertencia ao clã e era considerada inalienável, ou seja, não podia ser vendida a ninguém e só podia ser transferida por herança.
Essa herança costumava ficar para o filho mais velho. Na falta de um filho, poderia ser deixada para as filhas, mas elas precisavam se casar com alguém da própria tribo para que sua parte não fosse transferida para fora da tribo (Números 27:7-8 e 36:6-9). Se o proprietário morresse sem filhos, a herança ia para seu irmão, tio ou parente homem mais próximo. Este é um dos alicerces da Lei de Levirato, que obriga um homem a se casar com a viúva sem filhos do irmão a fim de fornecer um herdeiro para o falecido e evitar a alienação da propriedade da família. [ 378 ]
O efeito desses padrões de propriedade foi o fortalecimento da lealdade do clã e maior estabilidade nas organizações tribal-
patriarcais de uma geração para outra. Essa forte ênfase no controle patriarcal sobre a propriedade do clã e a forma como esse controle foi estruturado na própria organização da sociedade israelita tiveram grande impacto na posição das mulheres.
A descendência era considerada de forma patrilinear, com o filho mais velho sucedendo o pai em autoridade após a morte deste.
Todos os filhos e suas esposas moravam na casa do pai até sua morte. O pai negociava os casamentos dos filhos; no caso de filhos homens, pagando o preço de noiva. No caso das filhas, o pai fornecia-lhe um dote, que substituía sua parte da herança. Assim, as filhas de cidadãos ricos tinham certa proteção contra abusos, uma vez que a devolução do dote em caso de divórcio poderia ser uma desvantagem econômica para a família do marido. A situação das filhas de classes mais pobres não era diferente da situação nada invejável das mulheres pobres da Mesopotâmia, exceto pelo fato de que, no período monárquico e quando as filhas dos judeus não eram mais escravizadas, a escravidão passou a ser a sina de mulheres estrangeiras e mulheres de grupos conquistados. Além disso, de acordo com o regime de escravidão da sociedade israelita, em geral muito mais humanitária e leniente, a mulher escrava, no Deuteronômio, ganha liberdade no sétimo ano, assim como o homem escravo, e deve receber mantimentos e animais do rebanho do senhor (Deuteronômio 15:12-13).
Esperava-se de toda mulher israelita que se casasse e passasse do controle do pai (e irmãos) para o controle do marido e sogro.
Quando o marido morria antes da esposa, o irmão ou outro parente homem assumia o controle, casando-se com ela. Embora o costume do levirato tenha quase sempre sido interpretado como uma medida
de “proteção” à viúva, representava mais o interesse do homem em manter o patrimônio dentro da família. [ 379 ]
Como ocorria nas sociedades mesopotâmicas, os homens hebreus gozavam de liberdade sexual completa dentro e fora do casamento. O estudioso da Bíblia Louis M. Epstein afirma que, durante os períodos iniciais, o marido tinha liberdade de uso sexual em relação às suas concubinas e escravas. “Se as escravas-esposas fossem dele mesmo, não dadas a ele pela primeira esposa, ele podia presenteá-las a outros familiares [...] quando se cansasse delas.” [ 380 ] A poligamia, generalizada entre os patriarcas, depois se tornou rara, exceto pela realeza, e o casamento monogâmico se tornou ideal e regra.
Esperava-se que a noiva se casasse virgem, e a esposa devia ao marido absoluta fidelidade no casamento. A punição para adultério era a morte das duas partes (Levítico 20:10), mas a esposa judia tinha menos proteção contra falsas acusações de adultério do que sua contraparte mesopotâmica. O divórcio era uma possibilidade para o marido, com penalidade econômica, mas nunca para a esposa. Quanto a isso, a Lei Judaica era mais prejudicial para a esposa do que a Lei de Hamurabi. O mesmo vale para a legislação sobre estupro, que na Lei Mesopotâmica protegia um pouco mais a mulher. A Lei Judaica forçava o estuprador a se casar com a mulher que ele tivesse estuprado e especificava que não podia se divorciar dela. De modo implícito, isso forçava a mulher a um casamento indissolúvel com o estuprador (Deuteronômio 22:28-29).
No casamento, a esposa devia ter filhos; de modo mais específico, filhos meninos. A esterilidade, interpretada como fracasso em ter filhos meninos, era uma desgraça para ela e causa para divórcio.
Sara, Lea e Raquel, desesperadas quando se descobrem estéreis,
oferecem as escravas aos maridos para que os filhos delas contem como seus. Existe precedente legal para esse costume na Lei de Hamurabi, assim como existe precedente para o tratamento diferenciado recebido pela viúva com filhos meninos e pela viúva sem filhos. [ 381 ]
A adoção de parentes, desconhecidos ou até de escravos era prevalente na sociedade hebraica, assim como em outras sociedades do Oriente Próximo, como forma de dar ao homem um herdeiro em caso de falta de filhos e lhe garantir cuidadores na velhice. Ou um homem podia adicionar esposas ou concubinas à família, se sua primeira esposa não tivesse um filho menino. Essa situação, semelhante aos costumes de casamento na sociedade mesopotâmica, tal qual se reflete nos códigos de leis, é descrita nas histórias de Abraão e Agar e de Jacó e suas duas esposas e duas concubinas. [ 382 ] Esses complexos sistemas familiares também levantaram a questão da sucessão como um problema, uma vez que a lei não deixava claro, como a Lei de Hamurabi o fazia, se o filho mais velho de uma mulher escrava teria prioridade em relação ao filho mais velho da esposa legítima. O caso de Abraão e de Ismael, filho de Agar, é assim, e a história bíblica indica sem deixar dúvidas que o plano de Deus é que o povo escolhido (semente de Abraão) deva ser prole de Isaac, o filho do casamento legítimo, e não de Ismael, o primogênito, filho de uma escrava concubina. Há um precedente na Lei de Hamurabi § 170 para que a herança vá para o primogênito da primeira esposa em detrimento dos filhos da concubina, tendo estes direito a uma parte menor da herança se o pai reconhecê-los em vida. No caso de Ismael, Abraão já o reconhecera como filho, mas Deus ordenou que ele expulsasse Agar e seu filho, como desejava Sara, “[...] pois é através de Isaac
que sua linhagem será perpetuada” (Gênesis 21:12). Podemos considerar isso como um vigoroso endosso divino da primazia de direitos dos filhos legítimos.
A
social e legal das mulheres nas
sociedades mesopotâmica e hebraica, observamos semelhanças na regulamentação rigorosa da sexualidade feminina e na institucionalização de um duplo padrão sexual nos códigos de leis.
Em geral, a mulher judia casada ocupava uma posição inferior em relação à de sua contraparte nas sociedades mesopotâmicas. As mulheres da Babilônia podiam ser donas de propriedade, assinar contratos, abrir processos, além de terem direito a uma parte da herança do marido. Mas devemos também observar uma grande melhoria no papel de mulheres como mães no Antigo Testamento. O
quinto mandamento ordena que os filhos honrem pai e mãe da mesma maneira, e as mulheres são exaltadas como professoras dos filhos. Em Provérbios, mães e pais são igualmente exaltados e honrados em seus papéis, e descreve-se a mãe apenas em termos positivos. Isso é bem condizente com a ênfase geral na família como unidade básica da sociedade, que também observamos na sociedade mesopotâmica na época da formação do Estado.
Até aqui, baseamos nossas generalizações sobre o status das mulheres na lei bíblica, assim como muitos dos acadêmicos do meio. Mas a lei, como discutimos antes, reflete a realidade apenas de forma tangencial, considerando o que a lei aceita como fato e o que define como problemático. Por outro lado, a lei define normas para a conduta desejável, que em geral não representa as reais condições da sociedade. Podemos vislumbrar a verdadeira prática
na narrativa bíblica observando as práticas e os valores que são aceitos como fatos, portanto permanecem sem explicação.
As histórias de Ló em Sodoma e a origem do acordo da guerra contra os benjamitas trata indiretamente da posição das mulheres.
Como se conta em Gênesis 19, dois anjos na forma de dois estranhos visitam a casa de Ló em Sodoma. Ló faz um banquete para eles e os convida para passar a noite. Os homens cruéis de Sodoma cercam a casa e exigem que Ló lhes entregue os homens:
“Traga-os para que os conheçamos”. Tentando acalmá-los, Ló sai da casa e diz o seguinte aos sodomitas:
Meus irmãos, rogo a vocês que não ajam com tanta perversidade. Eis aqui, tenho duas filhas virgens; deixem-me trazê-las e façam o que acharem melhor; apenas nada façam a esses homens; posto que estão sob meu teto [Gênesis 19:7,8].
A turba invade a casa, mas os anjos atingem os homens da turba com cegueira, então eles avisam Ló sobre a iminente destruição da cidade de Sodoma e dizem-lhe que ele e a família seriam salvos,
“sendo o Senhor misericordioso com ele”. A linguagem aqui indica que Ló não é salvo por sua virtude, mas por causa da misericórdia de Deus e da de Abraão. (“Deus se lembrou de Abraão e tirou Ló do meio das ruínas quando destruiu as cidades onde Ló morava”
[Gênesis 19:29].) [ 383 ]
A passagem é embaraçosa para pesquisadores recentes.
Martinho Lutero exaltou Ló por manter a lei da hospitalidade e justificou seus atos: “Defendo Ló e acredito que ele tenha feito essa oferta sem pecado. Sabendo que a turba não estava interessada neles, ele apenas tentou apaziguá-la e não achou que estivesse
expondo suas filhas a algum perigo”. João Calvino, por outro lado, acreditava que “A grande virtude de Ló recebeu uma borrifada de imperfeição [...] Ele não hesita em prostituir suas filhas [...] Ló é de fato obrigado por extrema necessidade; mas [...] ele não é isento de culpa”. [ 384 ]
Pesquisadores posteriores basicamente seguiram essas duas linhas de interpretação. Sarna avalia que “a disposição de Ló em permitir que as filhas fossem violadas é totalmente incompreensível”
para o leitor moderno, “mesmo levando-se em consideração que a história reflete uma era e uma sociedade nas quais as filhas eram propriedade de seus pais”. [ 385 ] Acho notável que E. A. Speiser, que comenta e analisa o Gênesis linha por linha, não fale sobre os atos de Ló. Ele critica Ló pela “falta de espontaneidade” e aparente
“servilidade” em sua hospitalidade e descreve a “fraqueza latente do caráter de Ló” por ser “indeciso, confuso, ineficaz”. O único sinal de análise sobre o incidente com as filhas está na frase: “Fiel ao código não escrito, Ló fará de tudo para proteger seus hóspedes”. [ 386 ]
Speiser segue a interpretação de Calvino, e, fazendo uma análise voltada apenas à forma textual, Calvino parece razoável ao considerar uma mera “imperfeição” o fato de Ló ofertar as filhas à turba, uma vez que Jeová, para quem os crimes de Sodoma são tão repugnantes que destrói a cidade e seus habitantes, poupa Ló apesar disso. Se analisarmos essa história bíblica, observamos que o direito de Ló de dispor das filhas, mesmo que seja para oferecê-
las para que sejam estupradas, é dado como certo. Não precisa ser explicado; assim podemos deduzir que refletia uma condição social histórica.
Essa dedução é fortalecida por uma história um pouco semelhante contada em Juízes (19:1-21,25). Um levita, vivendo na tribo de
Efraim, tinha uma concubina de Judá que “agiu como uma meretriz contra ele e fugiu para a casa de seu pai em Belém de Judá” (Juízes 19:2). Depois de quatro meses, o levita foi atrás dela para
“conversar com cordialidade” e, após uma estadia prolongada na casa do pai dela, voltou para o lar, levando-a com ele. O levita parou em Gibeá, na terra de Benjamim, mas ninguém lhe ofereceu hospitalidade. Por fim, ele e seu grupo foram recebidos por um homem que era de Efraim. Enquanto o anfitrião alimentava os hóspedes, “certos vagabundos” da cidade cercaram a casa e exigiram que o efraimita entregasse os hóspedes a eles, usando quase as mesmas palavras da história de Ló, “Traga os homens para que os conheçamos” (19:22). O anfitrião se recusou, dizendo: Não, meus irmãos, rogo a vocês que não ajam tão perversamente; já que esse homem entrou em minha casa, não façam essa crueldade. Eis aqui, minha filha, uma virgem, e a concubina dele; eu as trarei aqui, humilhem-na e façam o que acharem melhor; mas não façam mal a esses homens [19:23-24].
Os homens não lhe deram ouvidos, por isso o levita “pegou sua concubina e a levou diante deles; e eles a conheceram e abusaram dela a noite toda até a manhã”, soltando-a quando amanheceu. A mulher caiu na entrada da casa e ali ficou. “E seu senhor acordou de manhã” e a encontrou, e, quando ela não respondeu, ele a colocou sobre o burro e levou seu corpo para casa. Ali ele dividiu seu corpo “membro a membro em 12 partes” e enviou os pedaços
“para todas as fronteiras de Israel” a fim de instigar os israelitas à vingança por esse ato cruel (19:27-30).
Essa narrativa é sucedida por um relato dramático sobre o conselho israelita, a decisão de pedir a rendição dos culpados em Gibeá, a recusa dos benjamitas de entregá-los e a consequente
guerra contra a tribo de Benjamim. O tempo todo fica claro que o insulto e a “crueldade” são o crime da falta de hospitalidade e o roubo da propriedade e da honra do levita. A postura do levita em relação à concubina, que no texto massorético é também chamada de “sua esposa”, torna-se evidente não apenas pela disposição em entregá-la para um estupro coletivo, mas pelo sono tranquilo durante a noite em que ela passa por essa provação. Em nenhum momento o texto o censura por seu ato nem censura o anfitrião, que oferece a filha virgem para salvar a vida e a honra de seu hóspede.
Pelo contrário, o texto sugere não ser necessária nenhuma explicação para esse comportamento. Devemos observar, entretanto, que em uma seção escrita em um período posterior (Levítico 19:29), um pai é especificamente proibido de ato semelhante: “Não profanarás a tua filha para torná-la uma meretriz, para que a terra não se prostitua e fique cheia de maldade”.
A narrativa anterior continua, descrevendo a total destruição dos benjamitas com a ajuda e o conselho de Deus. Os israelitas matam todos os homens, poupam 600 que fugiram para o deserto e queimam todas as cidades benjamitas. Antes de estourar a guerra, os homens de Israel haviam jurado: “Nenhum de nós dará sua filha como esposa a um benjamita” (21:1). Mas então percebem que esse compromisso significará a perda de uma das tribos de Israel.
Querendo agora pacificar os benjamitas restantes sem quebrar o juramento, os israelitas resolvem o problema entrando em guerra contra o povo de Jabes-Gileade, que não havia respondido ao chamado deles contra os benjamitas. Nessa guerra, os israelitas
“dizimam por completo todos os homens e todas as mulheres que já haviam se deitado com um homem” (Juízes 21:11). Sobraram 400
virgens, e os vitoriosos deram essas virgens aos homens da tribo de
Benjamim como esposas. Os 200 benjamitas que ficaram sem esposa recebem a seguinte ordem:
Eis que de ano em ano acontece o banquete do Senhor em Siló [...] Façam emboscadas nos vinhedos; e observem e vigiem, e se as filhas de Siló saírem para dançar, saiam dos vinhedos e agarrem cada um sua esposa entre as filhas de Siló, e voltem para a terra de Benjamim [21:19-21].
Os benjamitas seguem o comando e voltam com suas novas esposas, reconstruindo as cidades para “que uma tribo não seja apagada de Israel” (21:17). O relato termina com uma frase curiosa, que pode ser interpretada como dúvida em relação à retidão desses atos: “Naquela época não havia rei em Israel; cada homem fazia o que achava certo aos seus olhos” (21:25).
David Bakan, em uma construção bem engenhosa, interpreta a questão da guerra contra os benjamitas como um conflito e vitória da patrilocalidade sobre a matrilocalidade. Ele observa que o crime da concubina foi sair da casa do marido para a casa do pai, e que o mal é retificado, assim como o princípio da patrilocalidade se afirma,
ao levarem 400 virgens de Jabes-Gileade para a casa dos maridos. [
387 ] Embora seu argumento seja intrigante, não pode ser
comprovado de forma satisfatória. Outros avaliadores modernos ficam em silêncio sobre o tratamento dado às mulheres nessa passagem, assim como ficam em silêncio a respeito do caso das filhas de Ló. Por exemplo, Louis Epstein comenta sobre ambas as passagens que
[...] vemos nessas histórias um reflexo da revolta que judeus decentes sentiam em relação a esse ato (de sodomia); nos dois casos, o anfitrião ofereceu a filha para ser estuprada em troca dos estranhos, apelando que “tal ato vil” não fosse
cometido. Pode-se tomar como certo, portanto, que desde o início os hebreus consideravam a sodomia um ato extremamente imoral. [ 388 ]
Pode-se tomar por certo também que a honra e até a vida das mulheres estavam à disposição dos homens da família, que as consideravam instrumentos permutáveis usados para fins de procriação. Os homens de Benjamim, cujas esposas e crianças haviam sido mortas, aceitam novas esposas dentre mulheres escravizadas ou capturadas e então formam novas famílias. Quanto aos direitos legais sobre si mesmas ou seu corpo, não existe diferença entre mulheres livres e escravas, nem entre mulheres casadas e virgens. As filhas virgens são tão descartáveis quanto a concubina ou as mulheres escravizadas capturadas em conflitos.
A passagem em Juízes ainda corrobora as evidências históricas, discutidas no Capítulo Quatro, para as origens da escravidão.
Mesmo em uma guerra destrutiva entre as tribos de Israel, os homens são mortos, enquanto as mulheres são escravizadas e estupradas. Mas a história da guerra contra os benjamitas também demonstra como as guerras terminam e se pacificam por meio de acordos matrimoniais, que são completamente controlados pelos homens da tribo. Pode-se considerar a transação matrimonial das mulheres de Jabes-Gileade como o ato comum de escravizar e comercializar as mulheres do povo inimigo derrotado. Mas e as filhas de Siló, que estavam dançando em um banquete para o Senhor? Elas não eram inimigas nem seu povo foi conquistado. Elas apenas se tornaram fantoches em um esforço, motivado pela política, para pacificar um inimigo conquistado.
sobre o papel das mulheres no
Antigo Testamento tentaram dar certo equilíbrio às esmagadoras evidências da dominação patriarcal ao citar figuras heroicas femininas ou mulheres que fossem independentes de alguma maneira. Phyllis Trible chegou até a defender a existência de uma
“contracultura” à “cultura patriarcal de Israel”. [ 389 ] Em um ensaio interpretativo que detalha as várias expressões da dominância patriarcal no Antigo Testamento, outra acadêmica feminista, Phyllis Bird, afirma corretamente que, como suas evidências mostram, as mulheres são consideradas legal e economicamente inferiores aos homens na narrativa bíblica, e que isso refletia as reais condições da sociedade hebraica. Entretanto, ela defende que o homem do Antigo Testamento reconhece a mulher “como seu oposto e sua igual”, afirmação para a qual oferece pouquíssimas evidências. [ 390 ]
De modo semelhante, John Otwell conclui um livro, repleto de evidências em contrário, no qual afirma que o status das mulheres no Antigo Testamento era alto e que elas participavam completamente da vida da comunidade como esposas e mães. [ 391 ]
Aqueles que consideram que a narrativa bíblica mostra avanços para as mulheres apontam as poucas mulheres heroicas mencionadas na narrativa, falam sobre o papel das cinco profetisas citadas no texto, destacam as declarações positivas sobre mulheres em Provérbios e a riqueza erótica e o louvor à sexualidade feminina no Cântico dos Cânticos. Infelizmente, o método histórico não sustenta essa construção.
As poucas mulheres mencionadas como exemplos de papéis respeitados ou heroicos somem entre tantas mulheres descritas em papéis servis, submissos ou subordinados. É evidente que a narrativa, em particular no Cântico de Débora e na referência à
profetisa Hulda, corrobora a afirmação de que as mulheres eram reconhecidas como profetisas. Mas, quando colocamos essas narrativas em ordem cronológica, isso parece ter ocorrido no período inicial da história hebraica, antes ou pouco depois da formação do Estado. A partir da instauração da monarquia, não encontramos mulheres nesses papéis. Isso condiz com o padrão geral que observamos em outras culturas mesopotâmicas. O
Cântico dos Cânticos é tão difícil de ser interpretado e colocado em perspectiva histórica, que parece irracional fazer inferências sobre o real status da mulher com base na obra, que deve ser tratada como uma criação literária. Como a identidade da mulher no Cântico não é comprovada, além de ser bastante polêmica, não me parece possível usá-la como base para generalizações sobre as reais condições das mulheres na sociedade hebraica.
Pisamos em terreno mais firme quando vemos que o Antigo Testamento mostra uma restrição gradual do papel público e econômico da mulher, uma diminuição de sua função religiosa e uma crescente regulamentação de sua sexualidade, conforme as tribos judaicas passam de liga para Estado. Pode-se argumentar que a lei deutoronômica é mais favorável a mulheres do que o Levítico. A preocupação em combater o culto a Baal e Aserá, que perdurou durante e depois do Período Monárquico e que, ao que parece, era mais forte e persistente entre as mulheres, pode explicar a regulamentação cada vez mais rigorosa do comportamento das mulheres, o excesso de repreensão contra a “perversão” das mulheres nos Livros Proféticos e, enfim, o uso difundido da mulher desfrutável como metáfora para os males da sociedade pecadora.
Esses temas merecem o estudo detalhado e aprofundado de
especialistas bíblicos e literários. Aqui podemos apenas chamar atenção para o assunto.
Discutiremos, no próximo capítulo, as principais expressões religiosas e simbólicas de definição de gênero no Livro do Gênesis.
Resta-nos observar aqui como a sociedade hebraica definia a comunidade religiosa e como essa definição não apenas excluía as mulheres em princípio, como historicamente progrediu de pouca participação das mulheres para a exclusão delas.
Louis Epstein aponta que, na época dos patriarcas, homens e mulheres cuidavam de rebanhos juntos, se encontravam em poços, adoravam deuses juntos nos templos, compartilhavam celebrações públicas, comiam juntos e iam a casamentos e enterros juntos. A segregação no templo começa apenas com o segundo templo, que tem um “pátio de mulheres” do lado de fora, mas onde homens e mulheres congregavam. Epstein qualificou esse acontecimento explicando que “nem na prática nem na teoria essa era uma tentativa de segregar os homens das mulheres”. A mulher judia era parte da comunidade judaica; ela podia orar ou estudar a Torá: “Mas ela não fazia parte do culto, seja como funcionária ou administradora ou como integrante da congregação. [...] O templo tinha um pátio de mulheres no sentido de que tinha um espaço público para quem não participasse do ritual, onde mulheres se reuniam como parte do público”. [ 392 ]
O ensino da Torá aos filhos meninos era considerado uma tarefa religiosa primária, mas os pais não tinham essa obrigação em relação às meninas. Ainda assim, Epstein relata que, enquanto as crianças eram educadas em casa, ficava a critério dos pais ensinar as meninas. Até o quarto século d.C., havia pouca interferência em relação à presença de mulheres em reuniões públicas para ler ou
conversar sobre a escritura sagrada. Entretanto, é provável que a educação formal, que foi instituída no segundo ou no primeiro século a.C., limitava-se a estudantes meninos. [ 393 ]
Mostrarei no próximo capítulo que, desde o princípio, a comunidade da aliança era considerada masculina. Isso teria resultado, quase de modo sucessivo, em pouquíssimas
oportunidades para mulheres na função de culto, uma vez que, na tradição mesopotâmica, sacerdotisas serviam a divindades femininas, enquanto sacerdotes serviam a divindades masculinas.
Mas a identidade de gênero de Jeová não era especificada, sobretudo nos primeiros textos. O que é significativo para as definições de gênero na civilização ocidental são quais metáforas, símbolos e explicações os autores do Gênesis selecionaram das muitas fontes disponíveis. De forma semelhante, o que é significativo para o presente não é tanto o que os autores pretendiam com cada uma de suas representações simbólicas, mas que significado as futuras gerações extraem delas. Por exemplo, se não se conceber ou se pensar em Jeová como um Deus com gênero específico, mas sim como um princípio que incorporava aspectos masculinos e femininos, como defendem alguns teólogos, isso é significativo para nos mostrar que existiam alternativas à interpretação patriarcal tradicional, e que essas alternativas não foram escolhidas. [ 394 ] O fato é que há mais de 2.500 anos o Deus dos hebreus é tratado, representado e interpretado como um Deus-Pai masculino, não importando outros aspectos que possa ter incorporado. Esse foi, do âmbito histórico, o significado dado ao símbolo e, portanto, é ele que carrega autoridade e força. Esse significado passou a ter extrema importância na maneira como homens e mulheres conceituam as mulheres e colocam ambos,
homens e mulheres, na ordem divina das coisas e na sociedade humana.
Não foi, portanto, inevitável o surgimento de um sacerdócio exclusivamente masculino. A luta ideológica prolongada das tribos hebraicas contra a adoração a divindades cananeias, e em particular à persistência de um culto à deusa da fertilidade Aserá, deve ter enfatizado a liderança masculina de culto e a tendência à misoginia, que surgiu em sua forma completa apenas no período pós-exílio. [ 395 ] Sejam quais forem as causas, o sacerdócio masculino do Antigo Testamento representou uma ruptura radical com milênios de tradição e práticas de povos vizinhos. Essa nova ordem sob o Deus Todo-Poderoso proclamou a hebreus, e a todos os que usavam a Bíblia como guia moral e religioso, que as mulheres não podiam falar com Deus.
NOVE
A ALIANÇA
A
“Quem cria a vida?” está no âmago dos
sistemas de crenças religiosas. A geratividade abrange tanto a criação – a capacidade de criar algo do nada – quanto a procriação
– a capacidade de produzir descendentes. Vimos como as explicações religiosas de geratividade mudaram da Deusa-Mãe como princípio único da fertilidade universal para a Deusa-Mãe auxiliada na fertilidade por deuses masculinos ou reis humanos; e, então, para o conceito da criação simbólica, como expressa primeiro
“no nome”, depois “no espírito criativo”. Também vimos a mudança no panteão de deuses, da Todo-Poderosa Deusa-Mãe para o Todo-Poderoso Deus da Tempestade, cuja consorte feminina representa uma versão domesticada da deusa da fertilidade. Resta ao panteão ser substituído por um único Deus masculino poderoso, e, a esse Deus, ser incorporado o princípio da geratividade em ambos os aspectos. Essa mudança, que acontece de maneiras variadas em diferentes culturas, ocorre para a civilização ocidental no Livro do Gênesis.
A história da criação no Gênesis diverge de forma significativa das histórias da criação de outros povos na região. E Jeová é o único
criador do universo e de tudo o que nele existe. Ao contrário dos principais deuses dos povos vizinhos, Jeová não tem aliança com deusa nenhuma, tampouco laços familiares. [ 396 ] Não existe mais fonte materna para a criação do universo e da vida na terra, tampouco algum indício de que a criação e a procriação estejam ligadas. Muito pelo contrário, o ato de criação de Deus é completamente diferente de qualquer coisa que os seres humanos possam vivenciar.
O grande avanço do pensamento abstrato representado pela simbolização da criatividade como um “conceito”, um “nome”, o
“sopro da vida” ecoa nas palavras iniciais: “E disse Deus: haja luz, e houve luz” (Gênesis 1:3). A palavra de Deus, o sopro de Deus cria.
A metáfora do sopro divino como gerador de vida é elaborada no Gênesis 2:7: “Então formou o Senhor Deus o homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente”. “Havendo, pois, o Senhor Deus, formado da terra todos os animais do campo e todas as aves dos céus, trouxe-os ao homem, para ver como este lhes chamaria; e o nome que o homem desse a todos os seres viventes, esse seria o nome deles” (Gênesis 2:19). Sendo assim, o sopro divino cria, mas o ato humano de nomear dá significado e ordem. E Deus dá a Adão o poder desse tipo de nomeação. Ao interpretarmos a palavra hebraica adam como
“humanidade”, consideramos que Deus tenha dado o poder de nomear tanto para o macho como para a fêmea da espécie. Mas, nesse caso, Deus concedeu o poder somente, e de modo específico, ao ser humano do sexo masculino. [ 397 ] Isso pode ter ocorrido tão somente porque a fêmea ainda não havia sido criada, mas o padrão se repete após a criação de Eva, quando Adão lhe dá um nome, assim como havia feito com os animais. “E disse o
homem: esta, afinal, é o osso dos meus ossos e a carne da minha carne; chamar-se-á Mulher, pois do Homem foi tirada” (Gênesis 2:23). Nesse caso, nomear não só é um ato de criatividade, como define Mulher de modo muito específico, como parte “natural” do homem, carne de sua carne, em uma relação que é uma inversão peculiar do único relacionamento humano para o qual tal afirmação pode ser feita, a saber, o da mãe com a criança. O Homem se define aqui como “a mãe” da Mulher; por meio do milagre da criatividade divina, um ser humano foi criado a partir de seu corpo, da forma como a mãe humana produz vida a partir do corpo dela. A frase seguinte explica o significado dessa conexão em termos humanos: “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne” (Gênesis 2:24).
Considera-se aqui que a criação da Mulher a partir do corpo do Homem impõe uma interpretação bastante específica sobre o evento – a mulher foi criada como parte do homem e, portanto, o Homem deve se unir a ela, escolhendo-a acima de todos os outros relacionamentos de parentesco, e eles serão uma só carne. Diz-nos a fórmula de nomear que essa carne será do Homem, pois, definiu-se, pelo ato da criação de Deus e pelo seu próprio poder de nomear, a autoridade sobre ela como integral e vinculante. Essa autoridade também implica intimidade e interdependência, tendo sido utilizada durante séculos de interpretação teológica para aprimorar o relacionamento no casamento e, com isso, a dignidade das esposas. A ambiguidade e a complexidade dessa passagem têm acarretado interpretações bastante diferentes, o que discutiremos a seguir.
Nomear é um ato poderoso; um símbolo de soberania. Nos tempos bíblicos, aliado à antiga tradição oriental, ele também
possuía uma qualidade mágica, de nomeação e previsão do futuro.
Quando o filho de Agar recebe o nome Ismael, seu futuro está previsto. Na Bíblia, tal poder de “nomear” é dado tanto ao homem quanto à mulher. Exceto em algumas circunstâncias, mães e pais escolhem o nome dos filhos na narrativa da Bíblia. Mas existe outro tipo de nomeação, que podemos chamar de “renomear”, o que significa a pressuposição de um papel novo e poderoso para a pessoa a ser renomeada. Mencionamos antes a renomeação do deus Marduque, com mais de 50 nomes ao ascender ao poder. Da mesma maneira, Deus renomeia as pessoas de acordo com acontecimentos importantes. Feita a aliança, Ele muda o nome de Abrão para Abraão, “porque por pai de numerosas nações te constituí” (Gênesis 17:5), e o de Sarai para Sara. Isso acrescenta um significado adicional ao fato de Adão, o primeiro a usar o poder de nomear na história da criação citada acima, renomear a mulher, Eva, após a Queda. Isso nos passa uma impressão forte e reiterada de que o macho compartilha do poder divino de nomear e renomear. [ 398 ]
As metáforas de gênero mais fortes da Bíblia foram as da Mulher, criada a partir da costela do Homem, e de Eva, a sedutora, fazendo com que a humanidade caísse em desgraça. Por mais de dois mil anos, isso é citado como prova da subordinação da mulher como castigo divino. Como tal, tem exercido um poderoso efeito ao definir valores e práticas relativos às relações de gênero. Embora se espere que as interpretações de um composto poético, mítico e folclórico, como o Livro do Gênesis, variem para se ajustar às necessidades do intérprete, deve-se notar que a tradição da interpretação é predominantemente patriarcal e que as diversas interpretações feministas provenientes de mulheres, nos últimos
setecentos anos, são feitas contra uma tradição enraizada e teologicamente consagrada, que muito antecede o Cristianismo.
Existem duas versões, que parecem contraditórias, da história da criação no Gênesis. A versão J aparece em Gênesis 2:18-25 e foi escrita séculos antes da versão P, que surge antes em Gênesis 1:27-29. Na J, Deus cria Eva a partir da costela de Adão, enquanto na P “macho e fêmea ele criou, então”. As críticas bíblicas ao longo de vários séculos concentraram-se nas divergências entre as duas versões e discutiram os méritos de uma sobre a outra. [ 399 ]
A versão P compara a história da criação mesopotâmica, Enuma Elish, em seus vários detalhes e em ordem de acontecimentos.
Possivelmente, isso justifica a afirmação andrógina sobre a criação
– macho e fêmea Ele criou, então – refletindo a influência das ideias religiosas mesopotâmicas. Alguns intérpretes tentaram estender essa repercussão andrógina à versão J, salientando que a palavra hebraica adam, que significa “humanidade”, corresponde ao termo genérico para a raça humana, incluindo homens e mulheres, e que tornar maiúscula a primeira letra da palavra Adam teria sido um
equívoco posterior, com base em pressuposições androcêntricas. [
400 ] O efeito desse “equívoco”, reimpresso em dezenas de milhões
de versões da Bíblia em vários idiomas, foi acrescentar peso às interpretações tradicionais do Gênesis 28:18-25.
A criação da mulher pela costela de Adão é interpretada em seu sentido mais literal há milhares de anos, para indicar a inferioridade da mulher concedida por Deus – seja porque a interpretação recai sobre a costela como uma das partes “inferiores” de Adão e, portanto, um indício de inferioridade, seja pelo fato de Eva ter sido criada da carne e do osso de Adão, enquanto ele foi criado a partir da terra. Do ponto de vista histórico, a passagem tem recebido um
significado simbólico profundamente patriarcal. Como exemplo, podemos citar a interpretação relativamente benevolente de João Calvino:
Desde que, na pessoa do homem, a raça humana foi criada, a dignidade comum de toda a nossa natureza não tem distinção [...] A mulher [...] era nada mais do que uma aquisição para o homem. Por certo não se pode negar que a mulher, ainda que em segundo grau, também foi criada à imagem de Deus [...]
Portanto, podemos concluir que a ordem da natureza sugere que a mulher deva ser a auxiliar do homem. O provérbio vulgar, sem dúvida, é que ela é um mal necessário; mas a voz de Deus deve ser ouvida, com a qual declara que a mulher é dada ao homem como uma companheira e parceira, para ajudá-lo a viver bem. [ 401 ]
Em outro momento, Calvino comenta: “Adão foi ensinado a se reconhecer na esposa, como um espelho; e Eva, por sua vez, a submeter-se de forma voluntária ao marido, já que foi retirada dele”.
Tentando contestar esse significado, feministas usaram uma variedade de astutas interpretações. Dentre elas, um argumento inteligente de Rachel Speght, filha de 17 anos de um clérigo inglês, que observou em 1617 que a mulher fora criada a partir de uma matéria refinada, enquanto Adão, do pó. “Ela não foi criada a partir do pé de Adão, para que fosse inferior a ele, e tampouco da cabeça, para que fosse superior, mas de sua lateral, próximo ao coração, para que fosse igual a ele.” [ 403 ] Mais de dois séculos depois, a norte-americana Sarah Grimké concentrou sua interpretação no termo “colaboradora”.
Foi para dar-lhe uma companheira, igual em todos os aspectos; que fosse, como ele, uma agente livre, presenteada com intelecto e dotada de imortalidade, não uma mera participante de suas gratificações animais, mas capaz de acessar todos os sentimentos, como um ser moral e responsável. Não fosse esse o caso, como teria ela sido uma colaboradora dele? Ela era parte dele, como se Jeová tivesse planejado fazer a perfeita e completa unidade e a identidade do homem e da mulher. [ 404 ]
Esse argumento, de certa forma circular, embora forte em suas pressuposições luteranas de livre-arbítrio e responsabilidade moral do indivíduo, evita as implicações da imagem da costela na criação da mulher.
Em uma tentativa ousada de “reler (não reescrever) a Bíblia sem os antolhos” do viés patriarcal, a teóloga feminista moderna, Phyllis Trible, oferece-nos uma interpretação desafiadora da história da Criação, vista por ela como “imbuída da visão de uma Divindade transexual”. [ 405 ] A reinterpretação do século XX de Phyllis Trible é bastante semelhante à de Grimké, embora não pareça conhecer o trabalho dela. Trible vê semelhança entre a criação de Adão a partir do pó e a de Eva a partir da costela dele, no sentido de que ambos são feitos de materiais frágeis, os quais Jeová precisou processar antes que adquirissem vida. Ela também considera o fato de Eva ter sido criada por último como prova de que é a culminância da criação. [ 406 ] Outra teóloga feminista realça a semelhança essencial na afirmação basilar feita sobre o homem e a mulher: “A Mulher é, com o homem, a criação direta e intencional de Deus e o ápice dela. Homem e mulher foram feitos, em sua natureza completa e essencial, bissexuais”. [ 407 ] Em um debate com base em ponderações linguísticas, R. David Freedman argumenta que a
expressão “fazer uma colaboradora para ele” deveria ser traduzida como “poder igual ao do homem”. [ 408 ] Em todo caso, há pouca evidência em outras partes da Bíblia que sustente essas interpretações feministas de maneira otimista.
C
fontes da história da criação na Bíblia.
Dentre os elementos sumérios incorporados e transformados em narrativa bíblica estão o comer do fruto proibido, o conceito da Árvore da Vida e a história do dilúvio.
A descrição do Jardim do Éden é análoga à do jardim da criação sumério, o qual também é retratado como um lugar fronteiriço a quatro grandes rios. No mito sumério da criação, a Deusa-Mãe Ninhursag permitiu que oito plantas encantadoras florescessem no jardim, mas os deuses eram proibidos de comê-las. Mesmo assim, o deus da água, Enki, alimentou-se delas, e Ninhursag o condenou à morte. Em decorrência, oito dos órgãos de Enki adoeceram. A Raposa intercedeu em nome dele e a Deusa concordou em substituir a sentença de morte. Ela criou uma divindade de cura para cada órgão afetado. Ao chegar à costela, ela disse: “A deusa Ninti deu você à luz”. Em sumério, a palavra Ninti possui um significado duplo, isto é, “regente feminina da costela” e “regente feminina da vida”. Em hebraico, a palavra Hawwa (Eva) significa “aquela que cria vida”, o que sugere a possibilidade de haver uma fusão entre a Ninti suméria e a Eva bíblica. A escolha da costela de Adão como o ponto de criação de Eva pode ter sido apenas um reflexo da incorporação do mito sumério. Stephen Langdon sugere outra possibilidade fascinante ao associar o hebraico Hawwa ao significado aramaico da palavra que é “serpente”. [ 409 ]
Independentemente de se aceitar ou não a origem suméria da
história da Criação como explicação válida da metáfora da costela de Adão, é significativo que, em termos históricos, ela tenha sido ignorada e a explicação mais sexista tenha prevalecido.
O simbolismo da história do Gênesis sugere uma dicotomia entre Adão, criado do pó, e Eva, sucessora da antiga deusa da fertilidade, criada a partir de uma parte do corpo humano, cada um imbuído de substância divina, através da intervenção de Jeová. A dicotomia é reforçada na história da Queda, quando a divisão sexual do trabalho é decretada por Jeová, agora como castigo. Adão trabalhará com o suor do próprio rosto; Eva dará à luz com dor e criará as gerações.
Vale notar que a punição lançada torna o trabalho do homem um fardo, mas condena à dor e ao sofrimento não o trabalho dela, mas seu corpo fértil, resultado natural da sexualidade da mulher.
Há outro aspecto da passagem do Gênesis que merece nossa atenção. Aquele que deu origem divina à vida humana, o qual, na história suméria, era a deusa Ninhursag, agora é Jeová, Deus-Pai e Senhor. Se dermos crédito à versão P, Ele pode tê-los criado macho e fêmea, mas, se dermos crédito à J, criou o macho exatamente à sua imagem e criou a mulher, de outra maneira. [ 410 ]
David Bakan, em uma interpretação bastante original e estimulante do Livro do Gênesis, argumenta que seu tema central é a presunção de paternidade por machos. Quando os homens fazem a descoberta “científica” de que a concepção resulta da relação sexual entre o homem e a mulher, entendem que possuem o poder de procriar, o qual acreditavam antes ser algo que somente os deuses tinham. Homens, no desejo de “legitimar o exercício das prerrogativas que a grande descoberta lhes permitia”, aprenderam a distinguir entre “criação” (divina) e “procriação” (masculina). Eles substituíram a descendência matrilinear pela patrilinear e, para
garantir a autoridade paternal, exigiram a virgindade feminina antes do matrimônio e a fidelidade absoluta da esposa no casamento.
Com essa explicação, Bakan segue o argumento de Engels, já discutido, mas acrescenta: “Um grande mecanismo metafórico [...] é conceituar a ejaculação sexual masculina como ‘semente’. Essa forma de pensar atribui toda a dádiva genética ao macho e nenhuma à fêmea”. Bakan também argumenta que, nessa transição, o homem assume o papel de provedor/protetor, que era antes da mulher. Ele chama isso de “afeminação do homem”. [ 411 ]
Embora eu ache a tese principal de Bakan convincente e alguns de seus pontos coincidam com minhas conclusões, considero seu raciocínio determinista demais e seu método, anistórico e muito subjetivo. Um exemplo disso é sua interpretação do Gênesis 6:1-4: E aconteceu que, quando os homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra e lhes nasceram filhas, viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si esposas, de todas as que escolheram. Então disse o Senhor: “O meu espírito não permanecerá para sempre no homem, pois ele também é carne; portanto, os seus dias serão cento e vinte anos”. Havia naqueles dias Néfelins; e também depois, quando os filhos de Deus achegaram às filhas dos homens, e delas geraram filhos; estes eram poderosos homens de fama.
Bakan considera esse relato, sobre a relação sexual divina com mortais, a pedra angular no arco do desenvolvimento que descreve em sua tese. Ele ressalta que esse fato lida com as quatro preocupações humanas básicas, a saber: origem, morte, propriedade e poder:
Os versos indicam a origem do homem de valor. Determinam que a vida é terminal; embora a morte venha após generosos 120 anos de vida. Indicam a prerrogativa de uso, a essência da propriedade, no que diz respeito às filhas dos homens para os filhos de Deus, os quais tomam as que desejarem. Indicam que os que nasceram do conúbio eram homens de poder. [ 412 ]
Bakan apoia seu caso em uma seção muito difícil e polêmica do Gênesis. Gerhard von Rad interpreta esse texto de maneira bem diferente. Ele interpreta “filhos de Deus” ( elohim) como “anjos” e chama a união entre anjos e mulheres mortais de “o casamento do anjo”.
Os
“Néfelins”,
que
nascem
dessa
união,
são
reconhecidamente gigantes mitológicos. Von Rad, que interpreta a Bíblia apenas como um documento religioso, considera esse
“casamento do anjo” um exemplo da pecabilidade das criaturas de Deus (a partir da Queda, do pecado de Ló, do Dilúvio). O pecado inerente dos homens é ilustrado nesses incidentes, seguido da punição de Deus e enfim na aliança, por sua misericórdia redentora.
E. A. Speiser considera que “a natureza do fragmento é do tipo que desestimula a interpretação confiável”. Ele também considera elohim como “seres divinos” e considera a cópula com fêmeas humanas uma abominação. Ele cita a notável semelhança entre a história dos gigantes e o mito dos hurritas, no qual o deus da tempestade, Teshub, precisa lutar com um temível monstro de pedra. Speiser não faz comentários sobre a mulher na história. [ 414 ]
Acredito que Bakan errou ao tomar a expressão “filhos de Deus”
de forma literal, de maneira a se aplicar a machos humanos. A alusão aos gigantes antigos e a semelhança não apenas com o mito dos hurritas, mas também com os de origem suméria e grega – nos
quais protagonizam gigantes míticos em combate com deuses –
parecem-me convincentes. [ 415 ] Para mim, o que é significativo no texto é a alusão a mulheres humanas como filhas nascidas dos homens. “Quando os homens começaram a se multiplicar na face da terra e as filhas nasceram deles.” Não se explica como os homens vieram a se multiplicar, mas omitir as mulheres do processo me parece bastante significativo. Esperava-se que a passagem dissesse: “Quando as mães deram à luz os homens e eles começaram a se multiplicar”. O texto, escrito por J no século X a.C., sugere que as pressuposições sobre procriação já estavam bem definidas. O autor não vê necessidade em explicar por que os humanos “nascem dos homens”. De fato, essa é a suposição predominante ao longo de todo o Gênesis. Deus dá o nome de Isaac ao “filho de Abraão” e essa linguagem é usada até o final. Na cronologia, as “gerações dos filhos de Noé” são os “filhos dos pais”.